Suspense brutal, na Netflix, é ‘O Poderoso Chefão’ dos filmes de prisão

Suspense brutal, na Netflix, é ‘O Poderoso Chefão’ dos filmes de prisão

Não se pode negar que “Sem Perdão” reaviva velhíssimos clichês do cinema de macho. O filme de Ric Roman Waugh escolhe como protagonista um pai de família exemplar, bem-sucedido na carreira e querido pelos amigos, que, por um descuido tolo, começa sua descida ao inferno com toda a diligência, sem pular nenhuma etapa. Na cadeia, como Dante na “Divina Comédia”, esse homem, novo e agora perverso, aprende rápido o que precisa fazer a fim de se manter vivo, se é que há alguma vantagem em se manter vivo. Como se vê, nada de mais.

O pulo do gato de Waugh em “Sem Perdão” é, contudo, a forma como o diretor conduz a história de Jacob Harlon a partir de sua derrocada. A simpatia do público pelo personagem de Nikolaj Coster Waldau se conserva, justamente porque se percebe nele a dialética de sua nova natureza. Se por um lado, a auto-rejeição por quem se tornara nunca mais há de abandoná-lo — e ele o sabe —, seu instinto de sobrevivência não lhe permite simplesmente se entregar, uma das razões que o levam a aderir ao sistema, tanto o oficial, como o paralelo. Seu ingresso numa facção supremacista branca em meio às manjadas gangues de latinos, negros e asiáticos que lutam para não sucumbir a policiais omissos e inclementes, mas contando com a prestimosa ajuda de carcereiros facilmente corruptíveis é só o primeiro salto no abismo fundo da degeneração espiritual, que o consome sem que ele se aperceba.

Coster-Waldau é competente em transmitir a dubiedade de Harlon, a princípio transtornado por ter matado Tom, o melhor amigo vivido por Max Greenfield, depois de um acidente no carro dirigido por ele, mas que se mostra excessivamente disposto a encarar a trajetória na prisão sem chororô, começando por limar de sua vida a mulher, Kate, de Lake Bell — que apesar de subaproveitada, consegue imprimir a força de seu talento — e o filho, Joshua, a que Jonathon McClendon dá vida numa segunda fase, ocasião em que vai refinando suas aptidões delituosas se inteirando das negociações sobre a venda de entorpecentes dentro e fora da penitenciária e participando de motins. Ao fim de dez anos, Harlon ganha liberdade condicional, supervisionada pelo agente Kutcher, de Omari Hardwick, mas já é um homem marcado. A engrenagem criminosa funciona sem margem para erros ou ilusões e é implacável: uma vez que se entra no esquema, só se sai pagando com a própria vida. E esse é um preço que ele não está disposto a pagar.

Permanecer vivo é o pior castigo a que Harlon pode se condenar, e esse, sim, lhe parece adequado. As inconsistências do roteiro de Waugh são sensivelmente mitigadas pela performance de Coster-Waldau e Bell, malgrado ela quase suma no segundo ato do filme, o que é uma lástima. Justiça se lhe faça: sua direção, sobretudo no primeiro segmento, casa muito bem com o que propõe a narrativa, com o predomínio de cenas ágeis em que personagens diversos entram em cena em defesa de um mesmo propósito, qual seja, evidenciar o caos de uma vida de que não se pode esperar nada. Waugh opta por caminhos um pouco fáceis demais, e chega a incomodar sua obsessão por colar em Harlon o rótulo de coitado, mas, com algum custo, “Sem Perdão” se move para o lado da pluralidade semântica, tanto mais fundamental no ambiente em que o protagonista passa a orbitar. As aparições de Jon Bernthal, Emory Cohen e Holt McCallany, para ficar nos principais, corroboram a carta de boas intenções do diretor para com seu público, que, a pouco e pouco, se deixa envolver pela trama.

No segundo ato de “Sem Perdão” Waugh abandona a decisão, acertada, de privilegiar os conflitos existenciais do protagonista e prefere centrar suas atenções sobre os enfrentamentos de Harlon com os demais presos, o que implica em assumir o caráter simplório do que se estava descrevendo até então. Filmes de prisão costumam ser enfadonhos, exatamente porque, uma vez esgotada a tensão que leva homens a se comportarem como bestas, processo que desencadeia a violência dessas histórias, que, por seu turno, se presta a uma forma de catarse da audiência, não resta mais nada. Waugh tinha a faca e o queijo nas mãos, mas fica mesmo é chupando o dedo, e o público com ele; não consegue se decidir entre retratar o personagem de Coster-Waldau como o homem íntegro que se perde, entre outros motivos, pela necessidade de se mostrar à prova de erros — e, no momento em que comete o maior deslize de sua vida, seu ideal torna-se provar a si mesmo ser capaz de suportar os golpes da vida desumana na cadeia — ou sob a forma de um monstro, que se adapta ao confinamento forçado por ser o lugar que mais se lhe pertence, a exemplo de um peregrino que volta a casa depois de anos de caminhadas pelo mundo. A riqueza de um tipo como Harlon fica pelo caminho, já que as passagens de violência se apoderam do filme, redundando no tédio sobre o qual falamos anteriormente. É difícil lutar contra o que não se vê e Waugh não se mostra muito disposto a essa briga.

As duas horas de projeção seguem com toda essa irregularidade, oscilando entre seus muitos erros e seus atributos sem dúvida invulgares. Os detentos são mostrados de um ponto de vista estranhamente impessoal, talvez a imagem que melhor define o que o filme se torna. Sem dúvida, Ric Roman Waugh registra sua visão de mundo mediante uma lente aberta demais, mas tem um olhar capaz de detectar minudências a que se deve prestar toda a atenção. É óbvio o desconforto frente a uma história plena de idas e vindas, em especial quando se alude mais desabridamente ao componente da guerra entre os bandos, cada qual em defesa de seu grupo étnico. Em tempos férteis para a intolerância e o ódio, a mensagem nas entrelinhas de “Sem Perdão” acaba sendo explícita demais.


Filme: Sem Perdão
Direção: Ric Roman Waugh
Ano: 2017
Gênero: Drama/Ação
Nota: 8/10