Uma série de estudos e análises vem mostrando o quanto a Alemanha pouco inovou para criar o regime nazista que durou de 1933 a 1945. O acontecimento terrível do século 20 foi, na verdade, uma colagem do que se fez de mais perverso e violento em diversas regiões do mundo naquele período. Recentemente, a escritora Isabel Wilkerson contou, por exemplo, a história de como os alemães foram buscar nos Estados Unidos a inspiração e a base jurídica para a eugenia do nazismo, a ideia de purificação de raça.
Experiências precedentes tiveram um aprimoramento nas mãos dos nazistas. Como nota Giorgio Agamben, os espanhóis criaram os “campos de concentraciones” em 1896 para prender os rebeldes de Cuba. Mais adiante, os ingleses seguiram o modelo hispânico para fazer os “concentration camps” dos bôeres que se rebelaram na África do Sul no começo do século 20. O antissemitismo é a prata da casa dos franceses, e o genocídio de indígenas foi a especialidade dos projetos de colonização nas Américas.
No livro “Casta: As Origens do Nosso Mal-estar” (2020), Wilkerson dedica um capítulo para os alemães da década de 1930. Eles tinham o objetivo de dar aparência legal, jurídica, ao extermínio de certos grupos humanos. Os alvos seriam os judeus, os ciganos, os ditos incapacitados fisicamente e “degenerados”. No entanto, a eliminação de pessoas deveria ter um aparato de leis e não poderia ocorrer de forma desordenada. Com esse horizonte, a solução veio do outro do Oceano Atlântico: os Estados Unidos.
“Hitler estudara os Estados Unidos à distância, com inveja e ao mesmo tempo admiração, e atribuía as realizações americanas à sua linhagem ariana. Elogiava o quase genocídio dos indígenas americanos e o desterro para reservas daqueles que restaram. Agradava-lhe que os Estados Unidos tivessem ‘abatido os milhões de peles-vermelhas, reduzindo-os a algumas centenas de milhares’”, aponta Isabel Wilkerson, que encontrou registros dos preparativos alemães para a construção da solução final.
Um dos marcos históricos foi uma reunião em 5 de junho de 1934, em Berlim, para debater o arcabouço jurídico para a faxina étnica contra raças inferiores. Os burocratas alemães queriam saber como outros países haviam conseguido fazer com êxito a eugenia, por meio de regras contra imigração e casamentos interraciais. A discussão resultou nas Leis de Nuremberg, formuladas por um grupo de 17 juristas e funcionários do governo. Quem comandou os debates foi o ministro da Justiça do Reich, Franz Gürtner.
A expressão “eugenia” é a chave para entender o projeto dos nazistas. Trata-se de um conceito que pretendia ser científico para “melhoria da raça humana” e que foi concebido pelo inglês Francis Galton (1822-1911). Este era primo de Charles Darwin, o pensador da seleção natural da vida. As ideias dos eugenistas se encaixavam muito bem em países pós-coloniais que tinham uma imensa população afrodescendente, como Estados Unidos e Brasil. Era a época das propostas de branqueamento populacional.
Os juristas nazistas se encantaram por dois eugenistas dos Estados Unidos. O primeiro deles foi Lothrop Stoddard, autor de “A ameaça do Sub-homem” (1920). Na Alemanha, o termo “sub-homem” foi traduzido por “untermenscher”. “Os nazistas adotaram o termo, associando-se a ele em larga medida. Incluíram o livro de Stoddard sobre supremacia branca como bibliografia obrigatória no currículo escolar do Reich e, em dezembro de 1939, concederam ao autor uma audiência reservada com Adolf Hitler”, diz Wilkerson.
O livro “A Passagem da Grande Raça” (1916), de Madison Grant, foi a segunda obra para embasar o pensamento dos alemães na reunião de 1934. Grant defendia a esterilização de certos grupos sociais (negros, sobretudo) e eliminação de “fracos”, “incapazes” e “tipos raciais imprestáveis”. Os nazistas tinham enfim a base teórica e, também, um exemplo prático na Lei de Restrição à Imigração, de 1924, adotada nos Estados Unidos e vista por Hitler como um modelo a ser seguido pela Alemanha.
Wilkerson nota que os burocratas alemães viram nas leis e práticas norte-americanas o caminho para implantar o projeto extermínio em grande escala. “Os nazistas ficaram impressionados com o costume americano de linchar sua casta subordinada de afro-americanos, tendo tomado conhecimento das torturas e mutilações rituais que em geral o acompanhavam. Hitler sentia especial admiração pela ‘habilidade [americana] de manter um ar de inocência na esteira das mortes em massa’”, relata a autora.
Havia um grupo de homens ilustres que aderiram com entusiasmo às ideias da eugenia. Foram Alexander Graham Bell (inventor da telefonia), Henry Ford (empresários da nascente indústria de automóveis) e Charles W. Eliot (reitor da Universidade de Harvard). Trata-se da nata da elite dos Estados Unidos na época e que, em 1934, se reuniria para armar um golpe de Estado contra o presidente Franklin D. Roosevelt. O objetivo era acabar com os projetos do New Deal e adotar uma ditadura inspirada no fascismo.
Segundo o historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, o projeto de Benito Mussolini incendiou a cabeça de cerca das 24 famílias mais ricas e poderosas dos Estados Unidos. Elas montaram um exército de mercenários, uma milícia, para atacar o governo em Washington. O golpe contra Roosevelt fracassou. Porém, o episódio mostra que o escritor Philip Roth não teve um delírio ao imaginar como seria a eleição de um presidente nazista no romance “Complô Contra a América” (2004).
O livro de Isabel Wilkerson traz informações e análises fundamentais para o leitor e a leitora no Brasil. Ainda existe na sociedade brasileira uma imagem idealizada e falsa dos Estados Unidos como a terra da democracia e das liberdades. Nada mais equivocado, conforme se percebe por meio de um olhar detido em relatos históricos. Na verdade, os nazistas levaram ao grau máximo ideias, práticas e leis que estavam disseminadas em várias partes do planeta, como a eugenia dos norte-americanos.