A joia australiana, da Netflix, que você deveria assistir

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O filho de um clérigo muçulmano deveria ser o primeiro a zelar pelo que prega a religião islâmica, mas a interferência externa em sua vida — sobretudo do pai, mas não só — é tão abusiva, a sensação de vigilância fica tão sufocante, o ambiente em que é aprisionado passa a ser tão claustrofóbico que ele, ao contrário, não encontra outro meio para tentar algum alívio senão sustentar uma grave mentira, que se desdobra, claro, numa sequência de situações absurdas.

Embora aparentemente pesado, “O Casamento de Ali” consegue expor os conflitos sobre os quais deseja se estender sem sobrecarregar nem o drama de família em si e tampouco o elemento teológico da trama. Baseado num evento verídico, a comédia de situação de Jeffrey Walker também acena para o romance, e continua a ser capaz de preservar a leveza do enredo, palatável a qualquer público, muçulmanos, inclusive. Lançado em 2018, o longa conseguiu projetar-se razoavelmente no circuito comercial, repercutiu bem nas rodas mais alternativas e ainda é referência quando se deseja mencionar um trabalho que sabe lidar de maneira sensata com as contradições que o islamismo encerra, suas tradições, consideradas por muitos como obsoletas e mesmo superadas, e a necessidade de se levantar o tema recorrentemente, um exercício de tolerância e estima pela civilização.

O problema da inadequação do islamismo na era contemporânea vem à superfície sob a forma, na verdade, da perpetuação de regimes totalitários, no Iraque — uma sanguinária ditadura autocrática entre 1979 e 2003, centrada na nefasta figura de Saddam Hussein (1937-2006) — e no Irã, uma teocracia também desde 1979, quando da deposição do xá Mohammed Reza Pahlavi (1919-1980), que deu azo à ascensão do aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989). Como se sabe, o Iraque se livrou de Saddam há quinze anos, em 30 de dezembro de 2006, e caiu nas mãos de outros algozes, mas no Irã tudo permanece igual. Em “O Casamento de Ali”, flashbacks indicam que o xeque Mahdi Albasri, interpretado por Don Hany, deixou o Iraque natal fugindo pelo Irã, de onde saiu rumo ao Ocidente, a fim de se estabelecer em Melbourne, na Austrália, onde se torna o líder espiritual da mesquita da cidade. Seu filho Ali, o protagonista vivido por Osamah Sami, é frentista, mas estuda para o vestibular de medicina da Universidade local, assim como Dianne, a garota egípcia-australiana por quem é apaixonado. Helana Sawires empresta a Dianne a natureza desajustada e aflita de uma mulher que se sabe mais preparada que seus rivais do sexo masculino, que prova sê-lo, mas que é forçada a se submeter e aceitar o que decidem por ela. Meritocracia não quer dizer nada num cenário como esse, e mesmo que quase tenha gabaritado o exame, só consegue frequentar as aulas porque se sujeita aos desmandos ultrajantes do pai na lanchonete dele. Por outro lado, a fim de sufocar o complexo de superioridade de um vizinho, também classificado com uma pontuação elevada, Ali mente que foi melhor que ele, quando, na verdade, nem conseguiu ser aprovado. Este é o argumento de que Walker se vale a fim de atacar, com toda a singeleza, a hipocrisia, a misoginia, o machismo, a importância das falsas aparências na formação daquele grupo social.

Uma vez que Ali é um futuro médico, como acredita Mahdi, vai precisar de uma esposa que viva conforme a tradição — e claro que a opinião do rapaz não conta, portanto ninguém cogita o nome de Dianne. O xeque organiza um encontro na casa dos pais de Yomna, de Maha Wilson, apenas por formalidade, já que nem o futuro noivo e muito menos a futura noiva tem direito a questionar coisa alguma. A cerimônia do chá, como o evento é chamado, se presta a uma forma de todos se avaliarem uns aos outros, os pais da moça ao rapaz; a família do rapaz, as reações da moça, numa espécie de jogo de cartas marcadas, que pode ser desfeito caso o escore não satisfaça uma das equipes. Em paralelo, Sayyed Ghaffar, o fiel mais rígido da comunidade, personagem de Majid Shokor, destila um rio de veneno ao não se conformar que Dianne tenha tirado uma nota mais alta que a de seu filho, enquanto passa a duvidar que Ali, que todos têm na conta de um gênio, mereça mesmo ter chegado onde está.

Jeffrey Walker é expedito em absorver os conflitos da relação do imigrante obrigado a procurar um porto seguro distante de sua própria pátria por duas vezes, ao passo que explora as contradições intrínsecas da nova vida que todos passam a levar, ainda mais acossados pela carga ancestral das tradições religiosas. O islamismo como o conhecemos hoje é, como todas as doutrinas teológicas, fonte de salvação ou desgraça individual, a depender de como seja aplicado — daí a pletora de regimes totalitários que pervertem os ensinamentos do profeta Mohammed (571-632) em todo o Oriente Médio. A dada altura de “O Casamento de Ali”, o diretor deixa claro seu prazer em escancarar as diferenças entre homens e mulheres, patrocinadas e defendidas com afinco pelos primeiros, que participam de orações e debates no templo, enquanto suas cônjuges, irmãs e filhas se espremem num quarto dos fundos, assistindo a tudo pelo circuito interno de televisão. Mohammed pregava que as mulheres acompanhassem os homens em todas as circunstâncias, sobretudo nos rituais religiosos. Flertando com algum nível de oxigenação narrativa, Walker leva à cena o musical que ridiculariza Saddam, protagonizado por Ali e encenado na própria mesquita, uma passagem saborosa, sem dúvida, mas claramente farsesca. Tanto que acaba mal.

Filmes com temática semelhante a de “O Casamento de Ali” nunca se perdem, ainda que ou se prestem a um sem fim de lições de moral plenas de soberba sobre como o islã se desvirtuou de suas origens, ou defendam todo e qualquer absurdo cometido em nome de Alá, numa alusão estúpida (e desonestamente enviesada) ao direito à liberdade de expressão. Jeffrey Walker comete deslizes, sim, na condução de seu filme, mas não permite de maneira alguma a perpetuação de visões de mundo intolerantes em “O Casamento de Ali”, de ninguém. Em se tratando da gravidade do assunto, não é pouco.


Filme: O Casamento de Ali
Direção: Jeffrey Walker
Ano
: 2018
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.