As cores e mulheres de Pedro Almodóvar na Netflix

As cores e mulheres de Pedro Almodóvar na Netflix

A chegada de 12 filmes do espanhol Pedro Almodóvar à Netflix é um acontecimento e uma oportunidade de rever a produção de um dos cineastas mais relevantes nos últimos 40 anos. Do hilário “Maus Hábitos” (1983) ao recente “Mães Paralelas” (2021), é possível conhecer as diversas fases de sua obra. Trata-se de um cinema que flerta com as formas tradicionais (melodrama) e o pós-modernismo no sentido ampla. Nada fica estável em suas histórias que têm um fascínio por cores, música e mulheres.

Almodóvar surgiu no momento especial da Espanha. Após a ditadura do franquismo que durou incrivelmente de 1939 a 1976, os espanhóis entraram na fase de abertura para o mundo. Os socialistas assumiram o poder com Felipe Gonzalez, tendo a perspectiva de integração com a União Europeia. É uma nova sociedade que poderia deixar velhas brigas políticas no passado. O único fantasma aparecia na presença do grupo separatista ETA, que usava atentados a bomba para conseguir a independência dos bascos.

Má Educação
Má Educação (2004)

O novo país que se projeta ao mundo aparece nos filmes de Almodóvar e nos romances de escritores como Javier Marías. No caso de Pedro, como é conhecido na Espanha, o repertório é a busca pela superação de qualquer limite estético e político. Os dramas dele têm dois pés na tradição do bolero, e o humor é corrosivo, sem piedade. Como disse o diretor John Waters, o colega espanhol produz filmes repletos de temas gays e agrada públicos heterossexuais (ou binários, na linguagem de hoje) do mundo todo.

Da primeira fase radical, estão na Netflix “Maus Hábitos”, “A Lei do Desejo” e “O Que eu Fiz para Merecer Isto?”. São obras para chocar. Há um convento católico de freiras que criam tigres em seus quartos, em cenas surreais. O ator-fetiche Antonio Banderas aparece em situação quentes de sexo gay. Também já desponta a atriz preferida na época: Carmen Maura. Ela começou com Almodóvar ainda em filmes de curta-metragem nos anos 1970 e foi a intérprete de suas mulheres poderosas na década seguinte.

Volver
Volver (2006)

A explosão global de Almodóvar veio com “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), que ganhou o Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Carmen Maura faz uma dubladora de filmes que se separa do marido. Começa então a comédia com uma sucessão de personagens memoráveis. Também os filmes do diretor passam a explorar a questão visual com afinco, desde a abertura dos letreiros até as roupas usadas. Aparece claramente a influência da Pop Art de Andy Warhol, com suas colagens e cores.

O uso das cores básicas (azul, vermelho e amarelo) tornou-se uma das marcas de Pedro Almodóvar. Percebe-se um apuro visual que brinca com a questão da artificialidade do mundo pós-moderno nos anos 1980. Ele foi um dos poucos que soube aproveitar essas referências contemporâneas, talvez por sua capacidade de trabalhar com o exagero, o excessivo na tela. A protagonista de “Mulheres à Beira…” é a pessoa que absorve histórias de filmes antigos, pelo fato de ser dubladora, e leva isso para sua vida.

Dor e Glória (2019), Pedro Almodóvar
Dor e Glória (2019)

O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante associou os filmes do diretor ao pop das artes: “Há elementos na arte de Almodóvar em que as referências pictóricas são bem visíveis. Essa é a diferença entre ele e [Quentin] Tarantino, seu semelhante. Os dois fazem arte referencial, mas as referências de Tarantino são sempre outros filmes, embora em seu título mais conhecido faça referência à arte literária popular dos romancistas ‘pulp’, e não ‘pop’. As referências de Almodóvar são ocultas, mas mais cultas”.

A fase anos 1990 está representada na Netflix pelos filmes “Kika”, “De Salto Alto”, “A Flor do Meu Segredo” e “Carne Trêmula”. Novas musas ocupam o espaço deixado por Carmen Maura: Victoria Abril e Marisa Paredes. O viés anárquico de antes dá lugar aos dramas extremamente elaborados, mostrando uma busca pela perfeição. Começa também nesse período o jogo sofisticado de Almodóvar em torno da questão de gênero. Não há mais papeis fixos de mulheres, homens e gays. Tudo é fluido.

A psicanalista Ana Lucilia Rodrigues escreveu uma das melhores análises no Brasil sobre o diretor: o livro “Pedro Almodóvar e a Feminilidade” (2008), focado na intepretação do filme “Kika”. A grande sacada do cineasta espanhol foi perceber a importância das aparências do ser humano. Ao contrário da visão tradicional de busca pela profundidade, um núcleo da essência humana, Almodóvar expõe as pessoas como as diversas camadas de uma cebola. A vida é um conjunto de traços sobrepostos.

Mães Paralelas (2021), Pedro Almodóvar
Mães Paralelas (2021)

A lógica das aparências permite uma infinidade de caracterizações de gênero, todas intercambiáveis e instáveis. Esse jogo chega a um ponto alto em “Fale com Ela” (2002). Surgem na tela a toureira mulher em coma, seu companheiro que chora ao ouvir a canção de Caetano Veloso, um enfermeiro cuida de uma bailarina em coma que está internada na clínica El Bosque. Almodóvar recria o mito da bela adormecida que vai ser acordada por um ato sexual (um estupro, na verdade) e não por um beijo.

A sexualidade múltipla norteia a trama de “Má Educação” (2004), também acessível pela Netflix. O filme narra um romance de aprendizagem de dois meninos dos anos 1960 até os 1980. Almodóvar usa todo o imaginário de uma Espanha católica ainda sob o franquismo e que vai assumir mil outras faces nas décadas seguintes. Neste trabalho, o diretor mostrou sua capacidade de sofisticar seus roteiros, algo que vai chegar a um ponto alta maturidade em “Julieta” (2016) e “Dor e Glória” (2019).