Um dos melhores e mais originais filmes do século 21 acaba de chegar à Netflix

Um dos melhores e mais originais filmes do século 21 acaba de chegar à Netflix

Zombando de um dos maiores tabus da humanidade, Pedro Almodóvar tem em “Volver” um de seus melhores trabalhos numa galeria de filmes simplesmente magníficos. O diretor espanhol, um adorável polêmico, faz do filme uma maneira de superar a morte exaltando a vida — a vida como ela é (e decerto mesmo um tanto mais carregada das tintas melancólicas que uma vida comum venha a ter) — e da vida, uma sucessão de tramas complexas, que amalgamam beleza e hediondez, graça e infortúnio, dor e glória, mas que sempre vale a pena.

Havia me esquecido de quão bom, de quão benfeito, de quão sublime e rico “Volver” é. Assisti ao filme quando de sua estreia, numa tarde chuvosa de 2006, e passei a divagar em como estava despendendo minha vida, convicto de que aos vinte e poucos anos já havia feito uma porção de bobagens e seguiria dando minhas tantas cabeças pela vida afora, às vezes sem gravidade, às vezes me machucando a valer. Felizmente, levou “apenas” pouco mais de uma década para começar a poder tomar o destino pelo chifre e fazê-lo curvar-se aos meus desígnios tanto como possível. Assaltaram-me esses pensamentos por ocasião da suspeita de que, se não me emendasse, terminaria como Irene, a personagem de Carmem Maura, que não tem sossego nem depois de morta e fica condenada a vagar pelo mundo, completamente deslocada, dando-se por muito satisfeita quando aparecia um ou outro parente enfermo de quem se ocupar.

Como resta claro a dada altura do enredo, Irene se revestia, sim, de um estado fantasmagórico, uma vez que ninguém poderia saber de sua presença, mas era um espectro bem real. Tomando conta da irmã mais velha, Paula, vivida pela doce Chus Lampreave (1930-2016), que enfrenta um processo de senilidade acelerada e incapacitante, a cada dia mais cega, mais apática e sem energia para o serviço doméstico, Irene vive retirada do mundo, num pueblo espanhol em que as poucas mulheres que teimam em ficar têm como prazer maior lavar e lustrar as sepulturas dos maridos e filhos, azáfama quase carnavalesca, numa das aberturas mais poéticas do cinema. Claramente inspirado no Fellini de “Amarcord” (1973), Almodóvar situa o espectador em algum lugar de seu passado, recordando-se da vidinha singular em Calzada de Calatrava, a aldeia em que nascera, onde passou boa parte de sua história e da qual extraiu essas visões. A câmera passeia a uma distância segura das aldeãs, justamente a fim de preservar a solenidade do momento, pleno de lirismo ao juntar o ontem e o hoje, sem possibilidade de amanhã.

À medida que a narrativa toma corpo, surgem também Raimunda, um dos melhores trabalhos de Penelope Cruz, e Soledad, a Sole, de Lola Dueñas, filhas de Irene, além de Paula, a filha de Raimunda vivida por Yohana Cobo, batizada com o mesmo nome da tia da protagonista, e Paco, uma participação afetiva do ótimo Antonio de la Torre, o marido imprestável, bêbado e, conforme se vê na sequência, criminoso da personagem de Cruz. A figura de Paco reacende na vida de Raimunda um drama de que ela mesma não tinha conhecimento e um evento desencadeado pela conduta facinorosa do marido acaba implicando na morte dele. Nesse meio-tempo, a personagem de Lampreave também morre, o que lança uma nuvem de incerteza sobre Irene, que termina por se abrigar na casa de Sole, precisamente a mais medrosa das duas, mas que acolhe a mãe e até se beneficia de sua ajuda no salão de beleza clandestino que mantém em casa. Nunca fica suficientemente claro o que a personagem de Dueñas pensa acerca da reinserção da mãe em seu cotidiano, dada sua ingenuidade pueril, o que confere ao núcleo uma comicidade particular.

Almodóvar perseguiu com desvelo a posição de que desfruta no cinema. Sem receio de assumir suas preferências, profissionais e na vida pessoal, o cineasta deixa-se influenciar gostosamente pelo melhor de Hollywood, das produções da Era de Ouro, mais coruscante entre as décadas de 1930 e 1940, aos grandes sucessos do suspense, como “Psicose” (1960), de Alfred Hitchcock (1899-1980), agregando ainda a suas tramas a leveza das comédias românticas, reavivadas no começo dos anos 2000.

Assumidamente homossexual, o diretor ama as mulheres, todas elas, jovens, velhas, mortas ou vivas, e o sangue espanhol fala mais alto ao permitir-se dar declarações como as que exaltam os seios de Penelope Cruz, escandalosas já dezesseis anos atrás, e simplesmente impensáveis hoje, com o moralismo hipócrita do politicamente correto e da patrulha de militantes gays que têm absoluta convicção de que são as criaturas mais pias da face da Terra, defensores das causas mais importantes para a evolução do ser humano, indivíduos que detêm o bom, o justo e o belo só por manifestarem orientação sexual diversa da majoritária. São, na verdade, neofascistas como outros quaisquer e merecem igual repúdio, opinião que Almodóvar sempre fez questão de tornar pública. Mas volto ao leito.

O que mais intriga em “Volver” é que os problemas de família de Irene, Raimunda e Sole são enfrentados com maturidade espantosa, a despeito das personalidades um tanto folclóricas delas, cada uma a seu modo. A imposição da morte passa longe de ser uma questão somente metafísica para entrar de corpo e alma, com a licença do trocadilho, no cotidiano das três, e, repita-se, de maneira invejavelmente racional, malgrado o absurdo e mesmo o ridículo da situação. Se a personagem de Carmen Maura, a matriarca atormentada pelas escolhas a que teve de se sujeitar, soubesse que seria tão fácil, não teria passado a vida a fugir, apavorada com a mais pálida ideia de ser apanhada, julgada, condenada, não pelas leis, mas por Raimunda. Mas aí também não seria Almodóvar.

Se eu quisesse fazer comparações toscas, poderia dizer que Almodóvar está para Fellini assim como Penelope Cruz está para Sophia Loren, mas me controlo. Cruz incorpora mediunicamente a personagem para a qual se habilitou em “Volver”, verossímil como poucas vezes se viu na história do cinema, mérito dela, por óbvio, mas igualmente do diretor, que se mune da sensibilidade corajosa de escolher para seus enredos os atores que de fato se parecem com aqueles personagens, e mais, que não se envergonham deles e os assumem. Todos chegamos à conclusão evidente e imediata de que Cruz, com seus peitos sem intervenções humanas, poderia muito bem ter se tornado uma Raimunda, e ela certamente pensa que não haveria nada de errado com isso — em excetuando-se o que respeita ao personagem de Antonio de la Torre. É bom sentir alguma normalidade por trás das câmeras de quando em quando.

Todos temos nossa parte fantasma. Em “Volver”, Pedro Almodóvar, como diz o título do longa, volta às suas origens, arrancando seus esqueletos do armário em que foi forçado a se trancar, mormente quando jovem, e homossexual, vivendo em plena ditadura franquista, numa cidadezinha provinciana. O problema em ser um fantasma é que, cedo ou tarde, nos acostumamos à invisibilidade. Mesmo que quisesse, Almodóvar nunca poderia ser um fantasma.


Filme: Volver
Diretor: Pedro Almodóvar
Ano: 2006
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 10