O nazismo é uma ideologia baseada na superioridade racial de um grupo humano sobre outros. Por isso, diferentemente das ideologias nascidas do Iluminismo, não tem fundamento científico válido. Sua irracionalidade filosófica culminou historicamente na tentativa de extermínio de um povo, o judeu, nos campos de concentração. Nenhuma das principais ideologias políticas de expressão no Ocidente possui, como o nazismo, documentos que provem a perfeita identidade entre teoria e prática, neste sentido. A chamada Solução Final, assinada em Wanssee, Alemanha, em 1942, é o desdobramento natural das teorias racialistas do século 19 e do livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler. Por isso constitui-se num movimento visceralmente anti-igualitário e nem sequer liberal: razão suficiente para o chamado “mundo livre” contra ele se voltar. Mais que isso: proibir sua existência.
Em parte, as duas primeiras décadas deste século 21 são sombrias porque revivem o fantasma da intolerância racial, responsável por assassinatos em massa e genocídios. Não, certamente, uma intolerância de tipo fascista clássico, mas em que vários elementos de ação político-ideológica presentes em nossa sociedade identificam-se em algum grau com o conceito estabelecido de fascismo. Um desses elementos é a ideia de “supremacia racial”, testemunhada na última década tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, na qual líderes de extrema-direita ascenderam ao poder com o apoio de grupos radicais.
Para esses extremistas a supremacia tem cor: é branca (ou caucasiana e ariana). Há muito a antropologia ridicularizou essa ideia pré-científica, ao confirmar que não existe raça pura; o sueco mais albino possui gene negro em seu sangue. De modo que essa ideia só tem conteúdo ideológico, conforme os estudos competentes. Em tese, uma prova inequívoca dessa contradição entre a ideia de raça “perfeita” e evidências desfavoráveis pode ser subtraída do próprio “plantel” nazista. A olhos vistos. De nada adiantariam as parolagens do ideólogo Alfred Rosenberg nem de Adolf Hitler para esconder o óbvio: as características físicas daqueles indivíduos que se supunham “perfeitos”. A ideia estapafúrdia que defenderam baseava-se em mitos improváveis da cultura germânica e em pseudociência, como a eugenia de Francis Galton, utilizada também para justificar o imperialismo liberal, em franca expansão pela África, Ásia e América Latina, desde o século 19.
Em geral, os líderes nazistas provaram ser mentalmente complexados, megalomaníacos e insanos, com graus elevados de psicopatia, a despeito da célebre opinião de Hanna Arendt, em contrário. Não é muito convincente falar em sanidade no caso de homens como Amon Göth, o comandante de Auschwitz que se divertia fuzilando prisioneiros escolhidos ao acaso, da varanda de sua casa ali entrincheirada. Se se avaliar os tipos físicos nazistas enquanto tal, enquadram-se nos padrões médios de qualquer outra etnia. Se é verdade que alguns tinham traços mais simétricos, como Hermann Göring e Joachim Peiper, também é verdade que a maioria desses líderes, incluindo Ernst Röhm, Joseph Goebbels, Adolf Eichmann, Rudolf Hess, Heinrich Himmler e talvez o próprio Hitler, não se enquadravam provavelmente em nenhum padrão de beleza reconhecido pelos próprios alemães. Nem em simetria nem em estatura.
Röhm, o único dos grandalhões nazistas a ser assassinado pelo núcleo do movimento, na Noite das Longas Facas (1939), é um caso muito interessante, chegando a ser a única ameaça autêntica à liderança de Hitler, na fase de organização do movimento. Homossexual assumido, Röhm tinha o nariz pequeno e o rosto empapuçado. Era também completamente fora de forma. Já o propagandista Goebbels, além de mancar em função de deformidade congênita, poderia ser considerado baixo e franzino para os padrões nazistas, e tal como Himmler seu crânio encovado era dos menos formosos. Himmler, um dos líderes de alto escalão mais insanos — responsável direto pelo Holocausto, ao lado de Reinhard Heydrich —, possuía um queixo afundado e pequeno. É aliás muito curioso imaginar que, ao formar sua organização paramilitar Schutzstaffel (SS), Himmler, em pessoa, tenha se responsabilizado por escolher os tipos físicos mais desejados pelo Reich. Por seus próprios critérios deveria ser excluído automaticamente.
Porque Himmler e outros líderes nazistas eram apenas pessoas normais (imperfeitas e bastante caricaturáveis, até), embora, na conhecida ótica de perfectibilidade racial desejada, pudessem então ser consideradas portadoras de certos “defeitos físicos” óbvios (que não eram defeitos, na verdade, mas apenas características comuns de seres humanos comuns). Do ponto de vista estúpido que empregavam, a genética desses homens excluiria quase todos eles de uma seleção de modelos. Poderiam perfeitamente, desse ponto de vista insano, se autoenviarem para o laboratório de Josef Mengele, em Auschwitz, rendendo uma verdadeira tragicomédia do teatro nazista.
Sob o aspecto biológico específico, os nazistas apenas corroboram a falsidade do conceito de “raça superior”, visto que não diferiram dos demais seres humanos comuns de qualquer etnia. Revelaram-se até piores, em termos mentais. E sua força e inteligência, ao serem testadas, soçobraram após cinco anos de guerra — perdida, em boa parte, devido a erros flagrantes de cálculo lógico. A decisão de Hitler de criar duas frentes de batalha ao mesmo tempo, nas fronteiras Leste e Oeste, foi desastrosa para a segurança do povo alemão. Oficiais da SS como Gerd von Rundstedt reconheciam que a Batalha do Bulge (Drang nach Osten, “impulso para o Oeste”, em alemão), no auge do conflito, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945, era um suicídio em termos de estratégia.
Ora, o que leva toda uma cúpula político-militar a cumprir ordens absurdas, senão o medo? Afinal, nenhum oficial de alta patente iria contrariar Hitler, sabendo que a punição seria severa, sobretudo num momento em que o líder nazista dava sinais claros de descontrole mental e, que ironia, físico.
Do ponto de vista moral, também, pode-se dizer que os nazistas eram muito limitados, e não por causa do seu sadismo absurdo; não porque se comportavam como pessoas “más” diante dos seus semelhantes. O suicídio, método que a cúpula nazista adotou para se safar de suas responsabilidades perante a justiça, nunca fez parte da tradicional cultura militar prussiana. No Japão, onde constitui há séculos um código de honra, era não apenas aceitável como recomendável. Mas os nazistas não tinham fibra suficiente; eram fracos para encarar o rigor da lei, encarar penas perpétuas ou sustentar suas convicções diante do inimigo, que lhes oferecia a forca nos julgamentos de Nuremberg e de Israel, a partir de 1946. Posta em xeque, onde foi parar a coragem desses líderes, atributo indispensável do Übermensch (“super-homem”) alemão? Acuados, sentiram-se impelidos a fazer uso da bala e do cianeto, em porões obscuros.
Sem dúvida, é a faculdade da razão (a consciência e a inteligência) que distingue o homem dos outros animais, conferindo-lhe uma inequívoca vantagem competitiva. Os nazistas desprezaram essa vantagem de modo auto deliberado e persistente. De posse das mesmas tecnologias das forças aliadas — gostassem ou não, integravam a chamada “civilização ocidental” —, ainda assim eles foram dizimados por seus adversários. Aceitando seus próprios critérios tais coisas não teriam muito a dizer-lhes sobre os irracionalistas, numa pretensa escala evolutiva? Os nazistas, que constituem o exemplo mais extremista de irracionalidade ideológica, no último século, gostavam de se comparar aos Teutões, e curiosamente perderam a guerra porque provaram ser mais bárbaros do que todos os povos unidos: saxões, eslavos, latinos e minorias étnicas.
Mas a diferença, aqui, não é de raça, mas de concepção social, de valores e princípios, que de alguma forma nos melhoraram enquanto grupo. É que as sociedades que os nazistas confrontaram partilhavam aspirações como a democracia e a liberdade. Além de manifestarem, é claro, o mínimo de respeito pelos Direitos Humanos ou, pelo menos, o interesse de se aperfeiçoarem a partir da herança iluminista.