Magistral e hipnotizante, história de amor improvável, na Netflix, que você ainda não viu

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O vínculo milenar entre o homo sapiens e as demais espécies que povoam o globo pode ser explorado sob vieses diversos. “Alfa” resgata a história da convivência do homem e o cachorro, retrocedendo o tempo necessário para que fique explicado, sem margem para tergiversações, por que somos (quase) todos loucos por essas criaturas que têm tão pouco em comum conosco. Ou seja, é preciso voltar vinte mil anos para que se tenha a dimensão da importância desse encontro, para ambos os lados, momento em que cães eram, na verdade, lobos e o ser humano apresentava uma outra condição, muito distinta de como o conhecemos hoje, imprescindível para se manter no topo da cadeia evolutiva. Há controvérsias pontuais no que respeita ao mote central do longa — existem indícios que estimam a domesticação dos cachorros como um evento de quinhentos mil anos atrás —, mas o que realmente importa é que o filme de Albert Hughes, cuja estreia se deu em 2018, derrete o coração mais resistente a esses seres estabanados, gulosos, dependentes, e quando o processo enfim se completa, os enxergamos como animais cuja inteligência pode surpreender, capazes de atitudes inusitadas para defender quem os abriga, incomparáveis quanto a proteger o território em que se inserem e, como se não bastasse, amorosos até o desatino.

Como todo romance que se preze, a proximidade entre homem e cão não evoca boas lembranças desde o princípio, até porque, sendo preciso, o que se tem na origem desse relacionamento não é, por óbvio, um cachorro como o conhecemos hoje, mas um lobo, uma das feras que disputa com o homo sapiens a hegemonia sobre as formas de vida menos sábias e mais vulneráveis. A própria natureza humana era bastante diferente do que se tem hoje. Nossos cérebros eram visivelmente menores, dependíamos muito mais de nossos músculos para nos mantermos no jogo da vida e o indivíduo que demonstrasse a mínima hesitação quanto a abater seu predador se lhe surgisse a chance era um candidato ideal à morte. Keda, interpretado por Kodi Smit-McPhee, é um espécime com essas características, embora à primeira vista pareça ameaçador na caçada aos bisões empreendida pela tribo de que faz parte. O filho de Tau, de Jóhannes Haukur Jóhannesson, o alfa, o líder de seu povo, encerra grandes expectativas, mas se ainda hoje, num século 21 dito moderno, a sensibilidade não é propriamente uma qualidade nos exemplares masculinos do gênero humano — especialmente em determinadas circunstâncias —, sofrer de algum prurido moral ou mesmo sentir pena por ter de matar um outro ser vivo há vinte milênios era uma questão que não se podia deixar para depois. Keda não é capaz de dar o golpe de misericórdia no animal que o pai já havia ferido, uma demonstração de fraqueza que pode lhe custar caro, pois “a vida é para os fortes”, segundo lhe diz Tau. Naquele contexto, ninguém seria tolo de questionar a autoridade de suas palavras — e o filme exige do espectador a prática constante da licença poética —, tanto que o pior acontece. A tibieza circunstancial de Keda no enfrentamento a uma presa o lança num abismo; Smit-McPhee se sai muito bem ao valorizar a dubiedade de seu personagem, que inconscientemente encontra uma maneira de se afastar daquele núcleo social com que não se identifica e permanece, entre morto e vivo, preso numa alça de rocha, exatamente na metade do caminho que separa o precipício do chão. Esse coma se presta como seu renascimento, iniciado com o ataque de uma ave de rapina, que mesmo moribundo consegue enxotar.

Hughes se vale de cortes precisos, desde a sequência em que Keda, Tau e os outros silvícolas se lançam contra os bisões, até o mergulho quase mortal do protagonista, a fim de ressaltar a necessidade de viver em detrimento da vontade de sonhar. A montadora Sandra Granovsky entende a proposta do diretor e o que se vê na tela é um trabalho ágil, em que se tem perfeitamente claro que românticos como Keda ficam para trás. O garoto consegue se desvencilhar da armadilha que lhe preparara o destino, um desdobramento engenhoso no roteiro de Daniele Sebastian Wiedenhaupt, e Keda parte numa jornada meio falta de sentido, uma vez que não sabe para onde ir, todos pensam que está morto e, na verdade, deveria mesmo tentar outro rumo, longe de seu lugar de origem. Submetido a uma sucessão de provas de bravura, esse pacifista deslocado no tempo é farejado por uma alcateia, chefiada, como a tribo, pelo indivíduo mais valente e mais agressivo. Consegue se refugiar da morte uma segunda vez, agora na copa de uma árvore seca, de onde acerta o macho alfa, desbaratando o grupo, que o abandona para morrer.

A constituição assumidamente farsesca de “Alfa” elabora a amizade improvável do guerreiro avesso à guerra com o lobo, tomado de uma absurda gratidão pelo rapaz por este ter lhe assistido em vez de simplesmente matá-lo. Frise-se novamente: é necessário se descontar o nonsense do enredo a fim de se apreender o que há de dramaticamente rico no filme, uma fábula sobre respeito às diferenças, piedade e amor fraterno entre um homem e um lobo. Detalhes como a língua falada entre os membros da tribo de Keda ou a sofisticação de suas vestes também devem ser relevados, ou o aproveitamento da trama resta irremediavelmente comprometido. Se o público for capaz de superar essas pequenas incoerências, recebe em troca mensagens de puro lirismo, cada vez mais aparente à medida que Keda e o lobo, batizado, claro, como Alfa refutam as hostilidades de parte a parte e se permitem essa amizade nada previsível. Tudo embalado em imagens que intrigam pelo realismo, um grande trunfo de “Alfa”, materializado pelo trabalho de Martin Gschlacht.

Este é um filme que se utiliza dos clichês para subvertê-los. Tanto Keda como Alfa parecem meio fartos de serem só o que esperam deles, líderes inclementes prontos a trucidar um ao outro sem cerimônia. Solidário ao sofrimento daquele que deveria querer exterminar, o protagonista redefine sua história e a história de Alfa, que, como mostra o desfecho, também está pronto a perpetuar essa amizade. E assim chegamos a Lassie, Beethoven e Marley.


Filme: Alfa
Direção: Albert Hughes
Ano: 2018
Gênero: Drama/Fantasia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.