Filme da Netflix, tenso e comovente, dá uma aula de história sobre as consequências da maior tragédia do século 20 Divulgação / MGM

Filme da Netflix, tenso e comovente, dá uma aula de história sobre as consequências da maior tragédia do século 20

A vida imita a arte, como diz o gasto clichê, e a arte, por sua vez se vinga e eterniza os momentos dolorosos da vida de alguém ou da própria humanidade. Sempre se registraram em filmes as passagens lendárias da trajetória do homem, dignas da admiração, do respeito, do espanto e da ojeriza do espectador. Não que ideias vindas direto da cabeça saborosamente delirante de certos roteiristas tenham caído em desgraça; o caso é que há histórias tão bárbaras — e a palavra não poderia ser mais adequada em sua vasta semântica —, tão absurdas, tão fascinantes e, por paradoxal que pareça, tão inverossímeis que só mesmo o cinema para dar conta delas. A arte existe porque a vida não basta. A arte é maior que a vida. Como a manifestação artística que melhor consegue unir imagem, ação, relevância histórica e interesse público, o cinema cumpre um papel fundamental quanto a constantemente resgatar do limbo fatos que merecem ser lembrados, seja por encerrar lições que devem ser imitadas, seja por expor comportamentos e ideologias que têm de ser devidamente rechaçadas, de imediato.

Para Hannah Arendt (1906-1975), a capacidade de um indivíduo dito normal se sujeitar a ordens tresloucadas de um lunático e, assim, contribuir para um dos cenários mais monstruosos da história da humanidade tinha a natureza de um verdadeiro enigma que, em alguma medida, a fascinava. A filósofa alemã (e judia), uma das intelectuais de maior prestígio no mundo ainda hoje — passados quase cinquenta anos de sua morte —, tinha de averiguar o que de fato levara um homem comum a se tornar um dos maiores expoentes do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945). Despachara-se para Jerusalém, a fim de acompanhar o julgamento do facínora, mas chegara à conclusão de que não havia nada em especial a se contar: Adolf Eichmann (1906-1962) era mesmo um sujeito como outro qualquer, com aspirações e necessidades de um sujeito como qualquer outro, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava. Arendt levou tudo o que apurara às páginas de um de seus livros, todos clássicos, “Eichmann em Jerusalém”, publicado dois anos depois do veredito que condenou o médico à forca em 1961. Nele, a filósofa apresenta exatamente o que movia Eichmann, a banalidade do mal, conceito que ganhou o mundo, ainda que repetido da boca para fora, sem que se saiba ao certo o que se está tentando abordar. O braço-direito de Hitler era um funcionário exemplar, que apenas cumpria ordens no intuito de conferir a seu ofício a excelência que o caracterizava — e, igualmente, para permanecer ele mesmo vivo. Ao se dar conta de que a aventura do totalitarismo germânico fazia água, Eichmann, num lance realmente digno de filme, consegue fugir e se valer de um nome falso para começar do zero na Argentina. O médico vai levando a vida sem maiores sobressaltos, tampouco sem padecer de eventuais crises de consciência — e aí é que está o fulcro da questão —, até que sua figura arredia é captada por uma equipe de pesquisadores judeus. A intenção de um insólito rapto é logo aventada pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, e o Shin Bet, responsável pela inteligência militar do país, para onde é conduzido.

Baseando-se no roteiro de Matthew Orton, Chris Weitz verte essa história para o cinema em “Operação Final” (2018). Weitz opta por conferir o merecido destaque a Peter Zvi Malkin (1927-2005), o agente da Mossad responsável por chefiar a equipe que botou Eichmann na cadeia. O filme começa em 1954, apresentando Malkin, interpretado com denodo por Oscar Isaac, fazendo uma busca na casa de um suposto membro do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, foragido da justiça tedesca na Áustria. O homem tenta escapar, mas é abatido a tiros, e na sequência se verifica que se tratava de um nazista, dada a suástica na capa de alguns livros, mas não o nazista que procuravam. A operação parece fadada a não vingar, e como se não fosse o bastante, Malkin é atormentado por imagens em flashbacks onde se vê uma mulher ser intimidada por militares alemães numa floresta. Não se sabe de pronto de quem se trata nem qual a relação que o agente teria com ela, mas à medida que a história avança, o espectador é capaz de supor o que pode ligá-los.

Numa referência metalinguística, o diretor aloca alguns personagens para um cinema argentino que exibe “Imitação da Vida” (1959), de Douglas Sirk (1897-1987). Sylvia, de Haley Lu Richardson, se impressiona com a vividez da cena em que Frankie, de Troy Donahue, delata Sarah Jane, de Susan Kohner, por ser uma afro-americana que se identica como branca. Embora ligeiramente digressivo, o segmento é de grande importância a fim de se absorver o que “Operação Final” passa a abordar com mais veemência. Mesmo cerca de década e meia de acabada a guerra, o antissemitismo, o racismo e o neonazismo ainda pulsam na sociedade, mesmo num país intelectualmente arejado feito a Argentina. Uma curiosidade de bastidor, plena de sentido e emoção, é que Susan Kohner é a mãe de Weitz e, aos 81 anos, a atriz recebe a homenagem da melhor maneira: viva e ainda combatendo uma das maiores pragas da civilização.

O Eichmann de Ben Kingsley é um antagonista à altura do brilho de Oscar Isaac. Os personagens são obrigados a estreitar seus laços, uma vez que leva algum tempo até que as autoridades argentinas aquiesçam com a saída do nazista de seu território. Eichmann é mantido em endereço secreto até que se resolvam trâmites legais eminentemente burocráticos — uma crítica pontual e equilibrada de Weitz — e nesse ínterim Malkin explica a seu cativo que só poderão extraditá-lo se Eichmann concordar em conferir sua assinatura num documento formal, o que, claro, ele não cogita fazer. Este é o ápice do trabalho de Weitz, Isaac e Kingsley; a sequência em que Malkin raspa a barba de Eichmann, com uma navalha diligentemente afiada, é vigorosa o suficiente para sustentar todo o filme, ao passo que o encaminhamento para o desfecho se anuncia como se pode presumir.

São delicadezas como essas, levadas à tela observando-se detalhes essenciais a exemplo da fotografia bem-cuidada de Javier Aguirresarobe, que elevam filmes como “Operação Final” à esfera das obras de arte da indústria cinematográfica. No que concerne à dureza da vida real, Adolf Eichmann fora sentenciado à pena capital, por enforcamento, na presença de membros da família de suas vítimas, em 1° de junho de 1962. O julgamento de seu processo se estendeu por angustiantes catorze meses.


Filme: Operação Final
Direção: Chris Weitz
Ano: 2018
Gênero: Biografia/Drama/Guerra
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.