A obra-prima da Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram

A obra-prima da Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram

Seja pela amplitude do tema, seja pelo alcance mercadológico, os filmes de guerra têm lugar garantido no cinema, justamente por preservar o caráter belicoso dessas narrativas enquanto diretores se esmeram por contextualizar os eventos apresentados, quase sempre espinhosos, intrincados, que dependem da construção dramática exata para que façam sentido e, por óbvio, o espectador os absorva. Diferentes visões de um fato histórico, expostas e mesmo defendidas por diretores que convivem naquele universo por meses a fio, vêm à tona em filmes muito bem-cuidados, que põem por terra verdades monolíticas sobre dado assunto até então. “O Cerco de Jadotville” (2016), estreia do diretor de videoclipes Richie Smyth no cinema dramático, prima por não deixar que reste qualquer dúvida sobre a trama que se propõe a esquadrinhar, e é por esse motivo que se revela tão surpreendente.  

Em 1961, a República do Congo enfrentava uma grave crise. Grandes corporações brigavam pelos royalties do solo de Katanga, província ao sul do país, rico em minérios e pedras preciosas, e em meio a toda essa efervescência social, Moïse Kapenda Tsombe (1919-1969) toma o poder, dando início a uma das ditaduras mais fechadas e sangrentas da história. A Organização das Nações Unidas (ONU) envia tropas com 150 soldados irlandeses, liderados por Patrick Quinlan, interpretado por Jamie Dornan, a fim de restabelecer a paz na região. A inexperiência de Quinlan, aliada aos parcos recursos destinados à missão, redundam num fracasso ultrajante: o batalhão é rendido por três mil mercenários locais, sob a chefia de comandantes franceses e belgas ligados às mineradoras. Os irlandeses são despachados de volta para casa, tidos por fracos, covardes, desertores. Smyth contextualiza o enredo de “O Cerco de Jadotville” à luz da polarização cada vez mais acirrada entre Estados Unidos e União Soviética ao longo da Guerra Fria (1947-1991), em que todo o continente africano era disputado pelas duas potências. O embate entre americanos e soviéticos pelas riquezas do Congo mergulha aquela sociedade num processo de pauperização e confrontos armados em que até crianças ainda em tenra idade se incorporavam às fileiras dos regimentos, desde que tivessem o que comer no fim do dia, enquanto o ditador Tsombe enriquecia a olhos vistos.

O roteiro de Kevin Brodbin e Declan Power dá ênfase ao fato de as batalhas se passarem quase todas no campo, acompanhando Quinlan e seus homens, “virgens de guerra”, como se ouve a certa altura. A imperícia da tropa é decerto o fator que mais os atrapalha, mas os irlandeses são obstinados; ainda que num isolamento mortal, Quinlan e seus comandados avançam da maneira que podem, até que se dão conta de que estão sitiados, e o filme se aventura pelas razões geopolíticas por trás dos conflitos. Conor Cruise O’Brien, o representante da ONU vivido por Mark Strong, tenta dar termo à conflagração, momento em que o componente histórico de “O Cerco de Jadotville” recrudesce e o enredo se torna verdadeiramente relevante.

Louve-se “Cinquenta Tons de Cinza” (2015). O filme de Sam Taylor-Johnson foi o responsável por ter dado visibilidade e fortuna a Dornan, que por seu turno permitiu ao ator aventurar-se por projetos mais autorais e mais necessários. O protagonista de “O Cerco de Jadotville”, irlandês como o personagem, conduz seu papel sob rédea curta, emprestando ao comandante o ar macambúzio que o difere dos demais soldados. Os longos silêncios de Quinlan são, na verdade, uma reação muito natural ao tormento que começa a vivenciar, porque nunca antes estivera ali e agora é o líder de um grupo de militares, de defensores armados da civilização, que se batem até a morte, se necessário, que têm de dominar, antes de mais nada, aquele território. Se o comandante irlandês havia pensado que a vitória viria a galope, enganou-se fragorosamente. A dobradinha entre Dornan e Strong, intérpretes talentosos, mas recorrentemente negligenciados, manda um recado, tanto ao público como aos grandes diretores: é preciso sublimar a vontade de eternizar certos profissionais em determinadas performances, muitas vezes desconfortáveis e constrangedoras, para quem assiste e para quem as aceita. O’Brien cai como uma luva para o tipo grandalhão e algo misantrópico de Strong, que ao contrário do que se possa supor, revela uma face inacreditavelmente doce ao levar a cabo as instruções de Quinlan. A parceria dos dois, longe, por evidente, de insinuações quanto a bromances e que tais, conserva a natureza afetiva da relação, um acerto de Smyth quanto a tentar humanizar esses personagens e sua miséria existencial.

O elenco é um tiro certeiro em “O Cerco de Jadotville”, que também coloca em evidência a atuação irretocável de Danny Sapani como Tshombe. Sapani cresce tanto que supera os colegas e torna-se o grande destaque do longa; sua versão do déspota congolês perpassa momentos de ódio e euforia, o que sem sombra de dúvida mantêm a audiência desperta, uma vez que o filme não tem a força de um “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, tampouco o sentimento de um trabalho delicado como “Até o Último Homem” (2017), dirigido por Mel Gibson. “O Cerco de Jadotville” é um filme-mensagem, que alerta sobre a necessidade de se compreender a conjuntura por trás das grandes e pequenas tragédias da humanidade, todas nefandas. Quem é fã inveterado de filmes do gênero se ressente de mais tempo para que alguns arcos dramáticos paralelos se fechassem com definição maior, mas as cenas de luta campal valem o investimento.

Por mais calculadas que se apresentem numa primeira hora, guerras nunca são inócuas, e com a agravante de se darem num país alijado da democracia, última trincheira contra a barbárie, até a ocorrência mais banal adquire tons de carnificina. O que prova que, ao contrário do que declaram facínoras de todos os matizes ideológicos que lançam mão de vidas alheias para defender seus interesses, nada pode ser divertido na guerra.


Filme: O Cerco de Jadotville
Direção: Richie Smyth
Ano: 2016
Gênero: Guerra/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.