Quando o assunto é Roberto Carlos, escutamos absurdos dos mais inimagináveis, desde teorias da conspiração sobre a Globo (antes de a emissora existir!) tê-lo criado num laboratório, até ideias igualmente risíveis, como dizer que o artista tinha uma equipe de compositores num escritório, pagos para criar para ele.
Uma versão mais soft desse “preconceito intelecto-musical” tem outras ideias: “Prefiro o Erasmo!”. “Só gosto das antigas, com o Erasmo”. “Depois que acabou a parceria com o Erasmo o Roberto morreu”. Essa e outras frases semelhantes — primas de “prefiro o Michael Jackson quando era negão” ou “sertanejo bom era aquele antigo” — são usadas por quem reconhece a importância artista de RC mas o procura desmerecer, usando o clássico parceiro não por verdadeira preferência, mas para dar lastro à opinião.
No entanto, com e sem Erasmo, Roberto Carlos sempre foi capaz de criar canções geniais. Os dois maiores exemplos talvez sejam os verdadeiros clássicos populares “Como é grande o meu amor por você” e “Amigo”: a primeira, que é a segunda canção mais regravada (atrás apenas de “Emoções”) do repertório de RC, é uma composição solo de Roberto na fase “Em ritmo de aventura”. Já “Amigo” é peculiar: os dois fizeram juntos a melodia, mas a letra foi toda feita por Roberto e apresentada ao amigo quando a gravação já estava concluída.
A mítica parceria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos tem início em 1963 (“Parei na contramão”) e duraria até 1998, quando a então esposa de Roberto tratava um câncer e o artista passou a dedicar-se a compor canções sozinho.
Nesse tempo, houve apenas um breve rompimento: entre 1966 e 1967. O motivo: Erasmo se apresentara num programa de TV e, ao final, os créditos das canções interpretadas apresentavam apenas o nome do “Tremendão”. Roberto, chateado, ficou um bom tempo sem falar com o amigo de longa data, e a canção que representa a retomada foi “Eu sou terrível”.
Além disso, sempre houve liberdade entre os dois e, muitas vezes, conforme o próprio Erasmo confidencia em sua autobiografia (“Minha Fama de Mau”, Objetiva, 2009.), “muitas vezes um fazia a canção e os dois assinavam”. Ainda segundo o Tremendão, isso acontecia tanto no repertório de um quanto do outro — Roberto compôs canções lançadas por Erasmo, e vice-versa. Aí, pois, vão as 10 melhores canções de Roberto (sem Erasmo) Carlos.
Querem acabar comigo (1966)
“Querem acabar comigo: isso eu não vou deixar!”. O que acontece hoje em dia não é nenhuma novidade: tentam acabar com Roberto Carlos desde a primeira metade dos anos 60. Em seu livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso narra uma cena curiosíssima: “[Maria Bethânia apareceria] no programa de minissaia, portando uma guitarra elétrica de madeira maciça à moda roqueira, e cantasse ‘Querem acabar comigo’, a excelente canção de afirmação pessoal de Roberto Carlos (…) escrevi um texto sobre Roberto Carlos que Bethânia diria antes de cantar. (…) Era uma consideração da força mitológica da figura de Roberto Carlos, de sua significação como vislumbre do inconsciente nacional, de como ele era, comoventemente, ‘a cara do Brasil’ de então. Quando Beta, depois de dizer isso, cantasse ‘Querem acabar comigo’, ficaria claro com o que queriam acabar — e quem queria”. Vale procurar na internet o áudio dos primeiros ensaios da canção e conhecer um pouco mais das concepções musicais de Roberto Carlos. Há também versões conhecidas na voz de Zizi Possi e Titãs.
Namoradinha de um amigo meu (1966)
Originalmente, a canção foi feita para que o grupo “Beatniks” a gravasse. Era a banda de palco do programa “Jovem Guarda” e Roberto prometera compor para que eles lançassem seu primeiro single. Segundo se conta, por influência de seu empresário o cantor acabou optando por incluí-la em seu repertório. A canção tem até versões em japonês (“Otomodachio no koibito”), e teve regravações importantes por aqui, como as de Toni Platão, Biquíni Cavadão e Adriana Calcanhotto.
Por isso corro demais (1967)
Uma das primeiras canções de Roberto Carlos a fazer sucesso em italiano: “A che serve vollare”. A temática dos carros e da velocidade foi bastante usada por Roberto durante a Jovem Guarda e nesta música ele dá a tônica do romantismo que iria marcar seus sucessos após o fim do programa. A canção ganhou uma nova roupagem no “Acústico MTV” do cantor e tem boas versões de Marina Lima, Adriana Calcanhotto e Zélia Duncan.
Quando (1967)
Canção fundamental que deu a tônica da fase soul de Roberto Carlos: abuso dos metais, do baixo. E até uma curiosidade: três anos antes de os Beatles fazerem o mitológico “Show no telhado” quando da gravação de “Let It Be”, Roberto Carlos fazia isso no filme “Em Ritmo de Aventura”. Dentre as regravações, destaque para a versão do Barão Vermelho.
Meu Grito (1967)
Música emblemática. Roberto Carlos jamais a gravou, embora seja das mais significativas para o artista. À época, Roberto Carlos tinha um relacionamento com Cleonice Rossi, mas a lei não permitia casamento para desquitados — a Lei do Divórcio só sairia em 1977. Além disso, Nice era mais velha que RC. Roberto Carlos foi confessional: “Se eu grito todo mundo de repente vai saber (…) só falo bem baixinho, e não conto pra ninguém, pra ninguém saber seu nome. Eu grito só meu bem”. Quem gravou foi Agnaldo Timóteo, o que gerou muitas especulações sobre se a letra falava da homossexualidade do cantor.
As canções que você fez pra mim (1968)
Roberto Carlos compôs esta canção em homenagem a Dedé, seu baterista, que à época namorava a cantora Martinha. “Dedé estava sofrendo um bocado e um dia estava tocando no rádio uma música que a Martinha tinha feito para ele quando eles namoravam… Poxa, o Dedé estava sofrendo tanto! Foi aí que eu fiz ‘As canções que você fez pra mim’.” Faixa de abertura do famoso disco de Maria Bethânia em homenagem a Roberto, o álbum mais vendido da carreira da cantora.
As flores do jardim da nossa casa (1969)
Das melhores canções de toda a carreira de Roberto Carlos: embora disfarçada de tema romântico, fala sobre um dos momentos mais difíceis da vida do artista: quando seu filho (o Dudu) corria risco de ficar completamente cego: “talvez tenha sido uma das poucas vezes em que eu me senti sem forças para lutar”, disse o cantor em turnê da época, no número em que apresentava a canção. Belíssima versão com Maria Bethânia no disco “Diamante Verdadeiro”.
O astronauta (1970)
Uma história curiosa: Helena dos Santos foi uma das primeiras compositoras a darem músicas para Roberto Carlos gravar (“Na Lua há”, 1963). Grato, o cantor sempre procurou incluir uma faixa da compositora em seus discos dali pra frente. Porém, muitas vezes ela acabava sendo uma espécie de pseudônimo do próprio Roberto Carlos: é o que aconteceu em “O Astronauta”, de 1970: uma canção existencialista, com arranjo e letra bastante progressistas para a época.
É preciso dar um jeito, meu amigo (1971)
Um dos exemplos daquilo que foi mencionado no início do texto: Roberto fazia a música, e Erasmo gravava: “’Eu sou fã do monoquíni [gravada por RC em ‘Canta para a juventude’, de 1965] é minha; ‘É preciso dar um jeito meu amigo [grava por Erasmo em ‘Carlos, Erasmo…’, de 1971] é dele”, contou o Tremendão em sua autobiografia. Letra fortíssima, e arranjo à la Chuck Berry: “Estou envergonhado com as coisas que eu vi; Mas não vou ficar calado, no conforto acomodado, como tantos por aí”.
O divã (1972)
Talvez impulsionado pelo que conseguiu criar em “As Flores…”, Roberto expõe aqui seu maior drama pessoal: quando sofreu seu acidente que o mutilou, ainda na infância. “Relembro bem a festa, o apito, e na multidão um grito: o sangue no linho branco. A paz de quem carregava em seus braços quem chorava”. O título remete a uma visita ao psicanalista — como Manuel Bandeira em “Pneumotórax”. A genialidade se reflete na forma de interpretação e, principalmente, no arranjo: emulando o som de um trem. “O Divã” é o ápice da criação de Roberto Carlos.