Frenético e claustrofóbico, suspense de Jake Gyllenhaal na Netflix, fará você se contorcer no sofá Glen Wilson / Netflix

Frenético e claustrofóbico, suspense de Jake Gyllenhaal na Netflix, fará você se contorcer no sofá

Às vezes, refazer um filme é muito mais trabalhoso que pensar num outro texto, a ser desenvolvido por outros atores, e começar tudo do zero mesmo. Em 2018, a versão de Gustav Möller para “O Culpado” já havia chamado a atenção pelo jeito cru e sem rodeios com que aborda o lado humano da polícia. Três anos depois, esse mesmo atributo é o que, por muitas vezes, mantém o filme de Antoine Fuqua com o nariz fora d’água.

Operando no modo “em time que está ganhando não se mexe”, Fuqua dispõe de um bom material, em que mudanças pontuais no roteiro de Nic Pizzolatto deixam evidente a vontade de jogar luz sobre as questões que levanta. Os procedimentos padrão das corporações de segurança em situações de estresse, que existem justamente porque essa é uma constante na vida de qualquer policial, passam ao largo das preocupações de Fuqua e Pizzolatto, que preferem, claro, dar realce ao desequilíbrio do profissional que se depara com um cenário inconvencional em seu ofício. Por mais preparo e sangue frio que uma pessoa possa ter, há que se reconhecer que um pouco de alma nunca fez mal a ninguém.

Jake Gyllenhaal dá vida a Joe Baylor, um detetive caído em desgraça na profissão, cumprindo seu turno numa noite de caos em Los Angeles. Miudezas cênicas, como o inalador de que faz uso a fim de controlar a asma renitente — um desvio saboroso a fim de amenizar a dureza de um enredo como esse —, fazem com que o espectador logo incorpore o espírito do longa, que apregoa que Baylor é um homem comum, dotado de vulnerabilidades, como até mesmo os fictícios super-heróis. Todavia, sua criptonita não lhe é motivo de impedimento para fazer o que deve ser feito. Rebaixado ao posto de atendente de chamadas de emergência, Baylor remói seus dramas pessoais ao passo que ouve as histórias mais estapafúrdias, e essa promiscuidade emocional é o que o faz envolver-se além do razoável na intimidade de quem liga. O usuário de drogas ouve um pito para o qual decerto não estava preparado, e da mesma forma, toma corpo uma discussão displicentemente engraçada entre o personagem de Gyllenhaal e a vítima de um suposto assalto, levado a termo por uma prostituta. Como se pode notar, esse candidato a Dirty Harry está pagando com juros por seus deslizes, ao mesmo tempo em que comete outras tantas barbaridades.

A tensão em “O Culpado” vem a propósito do telefonema da mulher em pânico vivida por Riley Keough, que nunca aparece, mas cuja voz é mais que o suficiente para deixar protagonista e público em suspenso. Emily deixa evidente que está em perigo, mas o pulo do gato do roteiro de Pizzolato é fazê-la verossímil apenas pelo emprego da voz. Keough tira o desafio de letra, imprimindo a Emily o caráter de perigosa oscilação de humor e uma personalidade instável, predicados que definem o longa e lhe conferem razão de ser. É hora do escasso pragmatismo de Joe entrar em cena e nesse instante ele segue com as formalidades do atendimento, apresentando à mulher um questionário a ser respondido do modo mais sucinto possível, apenas com sins e nãos. Apesar da posição ser-lhe ultrajante, Baylor sabe que é conduzindo os atendimentos da maneira mais eficaz que pode retomar o prestígio perdido e como não consegue mesmo abdicar da veia detetivesca — até porque seu faro é excepcionalmente bom —, permanece com Emily ao máximo, fazendo algumas descobertas acerca da interlocutora, convicto de que Emily enfrenta dificuldades que ela nem mesmo supõe. Esses seus arroubos de autoconfiança, entretanto, indignos de qualquer policial que se preze, o lançam numa espiral de equívocos, que tornam ainda mais complexa sua situação.

O expediente na polícia vem à superfície desse jeito meio melancólico, privilegiando o caráter afetivo dos indivíduos que varrem a escória da sociedade (e, em muitos casos, se contaminam com ela, até de propósito), sem se pretender um comentário antropológico sobre excessos de autoridades. Por mais esse mau passo, sempre involuntário, Baylor é submetido a uma nova sanção, momento de “O Culpado” em que o público toma parte de uma discussão a respeito do quão legítimo pareceria a um policial encarar suas funções preterindo a racionalidade em favor do tal sexto sentido.

Replicando Hitchcock de caso pensado ou não, Fuqua investe todas as fichas de “O Culpado” no conflito anímico de seu personagem forte, com um Gyllenhaal completamente imiscuído da noção de dualidade do investigador. Na verdade, seu trabalho se assemelha muito mais do que aparenta às tramas do Mestre do Suspense; “O Culpado” reúne traços de “Janela Indiscreta” (1954), “Um Corpo que Cai” (1958) e “Disque M para Matar” (1954), sem prejuízo da originalidade. Nesse particular, o diretor orienta seu ator principal a não perder a aura de fragmentação de Baylor, que passa a crer de todo o coração que salvar Emily é o atalho para sua própria redenção, como policial, como chefe de família, como homem. Talvez com a melhor das intenções, o protagonista se deixa contaminar de suas paixões na resolução dos casos para os quais é designado, o que implica nos seus tantos escorregões. No encaminhamento para o desfecho, torna-se inquestionável também o desleixo para consigo mesmo; Joe Baylor é o anti-herói típico numa trama purista do gênero, isto é, não há espaço para grandes conversões ou arrependimentos. É precisamente esse sabor de noir, liderado por um personagem tão rico e tão pobre, que remonta ao melhor e ao pior de qualquer um de nós.


Filme: O Culpado
Direção:
Antoine Fuqua
Ano:
2021
Gênero:
Suspense
Nota:
9/10