A Revista Bula fez uma seleção com as 12 apostas da Netflix para o Oscar 2022. A cerimônia dos indicados acontecerá no dia 8 de fevereiro, às 10h, e pode ser assistida pelo canal oficial da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, no Youtube. A Netflix tem pré-indicados em todas as principais categorias. Entre os favoritos, estão: “A Filha Perdida”, de “Maggie Gyllenhaal”, “A Mão de Deus”, de Paolo Sorrentino, “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, “Tick, Tick… Boom!”, de Lin-Manuel Miranda, “Não Olhe para Cima”, de Adam McKay, e “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, de Michael Rianda. Todos lançados em 2021, os títulos estão dispostos em ordem alfabética. As sinopses e críticas são de Giancarlo Galdino.

“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, dirigido e escrito por Michael Rianda e Jeff Rowe, conhecidos pela série “Gravity Falls”, usa elementos de narrativa distópica a fim de contar como seria a dominação da Terra por dispositivos de inteligência artificial. Aqui, a humanidade depende de Katie Mitchell, uma nerd aspirante a cineasta, cheia dos conflitos típicos da idade, para se safar. Além de Katie, os Mitchell contam com Rick, o pai; Linda, a mãe; o irmão Aaron; e o pug Monchi, o mascote do clã. O filme é uma história divertida centrada na garota, meio perdida como todo adolescente, mas que acredita que quando se iniciarem as aulas na faculdade, na qual acaba de ingressar, vai finalmente se encontrar — e se enquadrar — no mundo. Rick é o típico paizão, provedor, que tem por hobby consertar coisas, mas não sabe por onde começar sua tentativa de arrumar a relação com Katie, ainda que seja visível o amor que têm um pelo outro. Rick vê na viagem para levar a filha à universidade uma chance de se acertarem de vez e decide cancelar o voo que havia reservado para irem todos de carro, num vibrante road movie.

A adaptação de Maggie Gyllenhaal para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante é um debute respeitável da atriz na direção. Publicado em 2006, “A Filha Perdida” narra as desventuras de uma mulher fragmentada, incapaz de lidar com a verdade e suas consequências, ou pelo contrário, tão acostumada a ter de encarar verdades tão contundentes que tem de aumentar a dose um pouco mais a cada dia, a fim de provar a si mesma que está viva. E foi por aí mesmo que Gyllenhaal se embrenhou, sem pejo, como Ferrante, de apontar as contradições de Leda, a protagonista vivida por Olivia Colman, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Favorita” (2018), dirigido por Yorgos Lanthimos, empenhando-se por tentar encontrar o X do problema da personagem.

“A Mão de Deus” remonta à Nápoles de 1986, quando da adolescência do diretor, Paulo Sorrentino. Seu protagonista e alter ego, Fabietto Schiesi, uma interpretação mediúnica de Filippo Scotti, é um garoto de 17 anos, tímido e observador como poucos, à procura de sua própria identidade numa família numerosa, onipresente, invasiva. Ele é o único a deixar escapar algum laivo de vergonha diante da sucessão de eventos absurdos que definem o convívio com os parentes — e o imbróglio místico em que se mete a tia materna, Patrizia, de Luisa Ranieri, com um São Januário mostrado sob a figura de um fauno que corrompe senhoras casadas, logo no começo do longa, o ilustra bem. Acontecimentos como esses vão dando a tônica do roteiro, decerto o trabalho mais despretensioso e mais preciso de Sorrentino, em que os detalhes são fundamentais. Os instantes de (pouca) sensatez que permeiam as conversas, os olhares, os gestos — até comedidos, em se tratando de italianos, e italianos do Sul — precisam ser levados em conta a fim de que o todo faça sentido nessa comédia memorialística, que guarda uma grande tristeza no meio do enredo.

Faz algum tempo que o faroeste, gênero cinematográfico genuinamente americano, vem se apresentando sob pontos de vista completamente inéditos. A adaptação de Jane Campion para a novela “The Power of the Dog” (1967), de Thomas Savage (1915-2003), nunca editada em português, revela, por exemplo, o componente homossexual de seu protagonista, Phil Burbank, de Benedict Cumberbatch. Seu pouco gosto para com as pessoas decorre do fato de ter perdido Bronco Henry, o amigo por quem se apaixonara, e nunca ter sido capaz de digerir essa grande tristeza. Peter Gordon, vivido por Kodi Smit-McPhee consegue identificar o problema e, a partir desse instante, o garoto enxerga em Phil o que Bronco Henry fora para esse seu contraparente a contragosto. Phil, por seu turno, também vai tendo o coração um pouco mais amolengado, se compadecendo do rapaz, querendo ensinar-lhe coisas. Inversamente ao que se tem em “O Piano” (1993), outra grande passagem do cinema em que o talento de Campion também se impõe, o envolvimento romântico entre Phil e Peter fica apenas subentendido, o que, por óbvio, se justifica em se considerando o contexto em que a subtrama toma corpo. Assim mesmo, o caso dos dois rouba as atenções, em especial por causa da forma como Rose se comporta frente à atração magnética de um pelo outro. A natureza perversa de Phil se manifesta mesmo quando a vida parece lhe dar boas razões para se emendar. Se antes o rancheiro via a presença feminina da personagem de Kirsten Dunst — a mulher com quem o irmão de Phil, George, de Jesse Plemons, se casara — à luz de uma ameaça que precisava combater, agora o perigo é ele próprio, de forma que seu interesse sincero por Peter soa como uma vingança, detalhadamente estudada, mas que receberá o contra-ataque devido. Vilão tornado anti-herói, o caráter dúbio do personagem de Cumberbatch é a cobra que ele nietzschianamente fez de questão de agasalhar em seu peito, e que agora está prestes a envenená-lo. Em 2022, “Ataque dos Cães” foi duplamente laureado pelo Globo de Ouro: ganhou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção, para Campion.

Citando o Harlem de 1929, o bairro negro por excelência da maior metrópole americana, num tempo em que ser negro não era nada bonito, “Identidade” remete a uma época de ouro do cinema — e de trevas para os Estados Unidos. O argumento central do filme de Rebecca Hall parece simples: Irene, interpretada por Tessa Thompson, e Clare, vivida por Ruth Negga, voltam a se encontrar, depois de anos sem se ver. À medida que retomam o contato, as duas partilham suas apreensões uma com a outra, ambas ansiando por exorcizar fantasmas que teimam em atormentá-las.
As protagonistas do longa, uma magnífica estreia de Hall como diretora, são antagônicas, mas se complementam. Apesar de alva, Irene, numa acepção do racismo internalizado de que é vítima, conhece o seu lugar e não abusa, não quer encrenca. Clare — uma brincadeira semântica de Larsen — parece muito satisfeita com seu cabelo platinado, que a fotografia em preto-e-branco do filme faz toda a questão de enaltecer, e foi adquirindo ao longo da vida um refinamento impensável a muitas moças brancas, e impossível a todas as negras (talvez tenha faltado uma providencial rinoplastia, a fim de deixar seu nariz tão fino quanto o de uma genuína princesa escandinava, papel que emula para sua vida, a despeito da cirurgia plástica estar ainda em seus primórdios nos anos 1920. Ironicamente, o Brasil, para onde, por sua vez, Irene e o marido, Brian, querem se mudar para fugir da discriminação racial [se eles soubessem…], transformou-se em campeão mundial na modalidade). Tanto empenho lhe garante o casamento com John, um homem de ascendência nórdica — da mesma forma como agiu a mãe da romancista, cujo segundo marido, Peter, o padrasto de quem toma o sobrenome por empréstimo, era dinamarquês —, que não desconfia da verdadeira origem de Clare, assim lhe parece. A esse propósito, ainda na primeira metade do enredo, quando as duas mulheres começam a se tornar próximas outra vez, Clare insinua que John pode, sim, ter suspeitado de sua “vergonha”, mas por orgulho viril, não dera o braço a torcer. Premissa que, se vai ver, não se sustenta.

Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de “Não Olhe para Cima “ suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.

Robert Greene se impôs uma empreitada difícil, mas também estimulante, com “No Caminho da Cura”. Em 2018, a entrevista de seis homens de meia-idade de Kansas City chamou-lhe a atenção. Os seis haviam sido vítimas de estupro por sacerdotes católicos, e quanto mais fundo se ia mais grossa a lama se tornava. O esquema foi adquirindo o caráter de uma verdadeira organização criminosa, em que o Vaticano teria dado guarida a 230 padres daquela diocese envolvidos diretamente no tráfico de crianças para fins sexuais, punindo sem rigor ou mesmo apenas tolerando e até ignorando os abusadores, e não só lá. Três anos antes, “Spotlight — Segredos Revelados” (2015) esquadrinhara didaticamente o modus operandi da quadrilha. Num drama histórico-biográfico algo similar ao formato de que Greene lança mão, Tom McCarthy detalha que, ao passo que sacerdotes eram flagrados em tais delitos, o bispo tratava de coibir qualquer investigação possível, mantendo-os longe até que tudo fosse tragado pelas brumas dos anos. A saída para se evitar um escândalo, que de tão monumental não tardou em vazar para a imprensa, era transferi-los para uma cidade distante e, claro, pagar generosas indenizações extraoficiais. Além do problema se perpetuar, por óbvio, houve um momento em que, de tão numerosas, as denúncias não cabiam mais no orçamento. Fim da linha.

A pandemia é só um trampolim em que Chung Mong-hong sobe para se projetar e finalmente se lançar sobre o que de fato quer discutir em “The Falls”. No Oriente — na China, sobretudo —, um pai pode ser tão distante do filho quanto o macaco do cão, mas os laços entre a mãe e sua prole às vezes pode apertar tanto que chega a sufocar. Chung Mong-hong consegue como poucos absorver o zeitgeist, o espírito que representa o tempo em que vive, a fim de exercer seu ofício da melhor forma, dando um passo depois do outro, concentrando-se na produção a que se dedica, sem muita ideia sobre como vai se sair, principalmente diante da crítica. Quanto ao público, esse fica cada vez mais preso pelo teor encantatório de tudo o que diretor leva à tela, e o espectador, sim, se pergunta se algum dia o taiwanês há de fazer alguma coisa que não seja genial, ansiando, por óbvio, que a resposta seja sempre negativa. “The Falls” honra a tradição taiwanesa, iniciada em 1980, de conseguir emplacar um filme na seleção da Academia. Talvez esteja chegando a hora de avançar uma etapa e mostrar o valor do cinema feito por gente tão aguerrida.

A narrativa de “Tick, Tick… Boom!” vai e volta, ora retratando a vida pessoal de Jonathan Larson (1960-1996), ora se concentrando em seu processo criativo, ainda que seja impossível dissociar uma do outro. Vivido por Andrew Garfield com sua competência usual, a produção de Miranda se presta a uma retrospectiva da curta trajetória de Larson, entremeando nas sequências que registram a angústia de uma vida meio besta, defendida com a ajuda de um subemprego medíocre e, em muitas situações humilhante — sobretudo quando se reconhece dotado de uma qualidade que os demais não têm —, seus momentos de catarse artística, em que consegue por para fora seus anseios e transforma a opressão da existência em canções. O embate entre Larson e seu espírito atormentado, de um artista desconhecido que ansiava por se fazer notar, por ser valorizado por seu verdadeiro ofício, como se sentisse que para ele o tempo, a exemplo do que acontece num filme de ação ruim ou num desenho animado inconsequente, menos elástico que para os outros, era regido pelo compasso de uma bomba-relógio — daí a referência lúdica de Miranda à onomatopeia do título —, é o grande mote de “Tick, Tick… Boom!”, registro dos bastidores silenciosos e torturantes da composição de um musical sobre um musical. Uma espécie de prelúdio de “Rent”, levado à cena em 1994, um dos shows de maior prestígio na Broadway ainda hoje.

“Três Canções Para Benazir” (2022) não se alonga sobre as razões pelas quais o país chegou aonde chegou e como, preferindo se fixar na realidade de seus moradores, especialmente os refugiados de um abrigo da Organização das Nações Unidas (ONU) em Cabul. Para representá-los, os diretores afegãos Gulistan e Elizabeth Mirzaei — já ovacionados por “Laila at the Bridge” (2018), sobre Laila Haidari, uma mulher que consegue escapar da sina de ter de se casar ainda criança — se debruçaram sobre a vida de Shaista, recém-casado com a Benazir do título. Como Laila, o rapaz tenta dobrar o destino que o pai e os outros membros de sua tribo escolhem para ele e sonha em se alistar e integrar as frentes do Exército Nacional Afegão. Como se vê na sequência, não são somente as mulheres que têm de se conformar com as parcas esperanças que a pobreza institucional afegã reserva a seus cidadãos. Por já ser casado e com um filho a caminho, o pai e os integrantes da tribo vetam seu ingresso na corporação, um revés que degringola num fim melancólico para Shaista.
Já na estreia, o documentário de 22 minutos despertou a atenção de críticos de todo o mundo, passando a ser o favorito de muitos festivais. Sem dúvida, “Três Canções Para Benazir” é um excelente ponto de partida para quem quer entender um pouco mais sobre a condição da população afegã, abandonada à própria sorte por aqueles que deveriam protegê-la, mas usam a desculpa da defesa a qualquer custo da religião e dos costumes para massacrá-la. Os Mirzaei fizeram um grande trabalho — como atesta o interesse da Academia em aceitar sua candidatura ao Oscar de Melhor Curta Documental em 2022 —, mas resta muito a se dizer depois dos créditos finais da produção.
Shaista já estava no radar dos cineastas, sobretudo de Gulistan, desde que o encontraram no acampamento da ONU, na fila para a distribuição de comida. Entre os dois, se impunha uma coincidência triste e impositiva: Gulistan também fora um refugiado durante a invasão soviética. O diretor sentira que aquela alma vibrava no mesmo diapasão que a dele e, portanto, alguma boa história poderia sair dali. “Ele tinha esperança, tinha sonhos. Havia qualquer coisa nele que nos atraía”, relatou Gulistan. A primeira abordagem se deu em 2009 e foram necessários mais quatro anos até que as filmagens efetivamente começassem. Ao longo desse tempo, Gulistan e Elizabeth mantiveram as visitas a Shaista, vínculo que foi se estendendo e alcançou boa parte dos moradores da área. Essa confiança é fundamental num relato eminentemente biográfico como “Três Canções Para Benazir”; se no início os abrigados se mostravam refratários a qualquer tentativa de conversa, no decorrer de quatro anos os Mirzaei tinha material o bastante para dar forma cinematográfica ao que sua própria gente lhe confidenciara.
À ideia original, de registrar o romance prematuro de Shaista e Benazir, juntou-se a necessidade inexpugnável de falar da situação sociopolítica do Afeganistão, ainda que superficialmente. Pelo conflito entre o protagonista, seu clã e seus patrícios — a inconveniência quase herética de Shaista em querer ser militar, e não um trabalhador nos campos de papoula —, se tem uma ideia, pálida, do completo desconhecimento de noções básicas de qualquer organização social minimamente civilizada, como individualidade, meritocracia, vocação. É visível a debilitação espiritual de Shaista a cada golpe, até o derradeiro, quando amaldiçoa o pai que o condena à derrocada não só do espírito, mas também física. A animação do garoto dá lugar ao ressentimento e à idiotia, momento em que se parece com Benazir no que ela tem de pior. Se antes Shaista era capaz de passar por cima de sua maciça prostração existencial, certamente alimentando a ilusão de ser soldado, depois que é obrigado a abdicar definitivamente da ideia e ir colher papoulas, não consegue evitar acabar como acaba. Como se sabe, a produção de papoula, segue de vento em popa no Afeganistão, o que seria uma ótima notícia para a economia arrasada do país. Contudo, o ópio continua a ser desviado, desde a origem, para a fabricação de ópio, um dos entorpecentes mais nocivos que existem. Sob o olhar conivente do Talibã.
Como genuínos afegãos, Gulistan e Elizabeth têm esperança de que “Três Canções para Benazir” vá além do aspecto documental — malgrado o que prevaleça mesmo seja seu teor dramático — e sirva de chamariz à comunidade Internacional quanto a agonia do Afeganistão, um país que, como o Brasil, tinha tudo para decolar e se afunda em meio aos desmandos de castas que, de uma maneira ou de outra, se assenhoram do futuro de todo um povo por gerações, sem perspectiva de retorno. O Afeganistão, o Brasil e tantos países subdesenvolvidos vêm se conformando com o fado de ser, em maior ou menor medida, só um quadro empoeirado numa parede arruinada. Os Mirzaei levaram dez anos para entender isso, até 2019, quando deram seu documentário por encerrado. Tem gente que está levando mais de cinco séculos.

O montanhista britânico George Mallory (1886-1924) foi um dos primeiros homens a desafiar publicamente a força da natureza. Mallory não se conformava em admitir que o monte Everest fosse apenas um maciço composto por quase nove mil metros de rocha e neves eternas, impassível na vastidão do Nepal, e em 1922 participou da primeira campanha oficial para subir a montanha das montanhas. Como se vê em “Viagem ao Topo da Terra” (2021), o que a empreitada pudesse ter de glamourosa, tinha também de complexa.
Baseado nos mangás de Jirô Taniguchi e Baku Yumemakura, a animação de Patrick Imbert se centra na figura de Mallory para contar uma história de superação, mesmo depois de frustração, fracasso, morte. Um introito rápido, em preto-e-branco, expõe parte do que se trata a história, uma tentativa de se desvendar o propósito de vida de gente como ele. Fukamachi Makoto, um fotojornalista japonês que registra paisagens inexploradas em Katmandu no começo dos anos 1990, é inserido no enredo quase por acaso. É por meio dele que o montanhista se fixa de vez na trama, quando alguém quer lhe vender uma câmera, mas não uma câmera qualquer: esta seria, de acordo com o sujeito que detém a posse do objeto, a câmera que George Mallory perdera quando de sua malsucedida incursão ao Everest, setenta anos antes. Temendo se tratar de um golpe, Fukamachi o enxota, para, na sequência, o roteiro de Imbert, Magali Pouzol e Jean-Charles Ostorero deixar o espectador ressabiado sobre se Makoto tomara a decisão certa ou fizera a maior burrada de sua vida.
Como no mangá, a história do filme ziguezagueia entre a ânsia por se entender Habu, personagem que mantém uma relação direta com a suposta câmera de Mallory, e a vontade de tentar explicar, pela própria experiência, por que alpinistas permanecem completamente seduzidos pela mera ilusão de subjugar a maior montanha do globo, inclusive Habu, um homem misterioso, que já tivera sua chance. O trio de roteiristas se revela uma equipe convincente ao abreviar os quadrinhos de Taniguchi e Yumemakura — um calhamaço de 1.500 páginas — e traduzi-los num filme sofisticado e coeso, de pouco menos de cem minutos. Evidentemente, muitas das subtramas que fornecem respiro à história central acabaram por serem deixadas de lado, o que ocorreu sem maiores traumas e, mais importante, sem prejuízo da audiência que o mangá alcançava anteriormente, feita não só de apreciadores do gênero, amantes do esporte ou de acadêmicos que se debruçam sobre a história da imprensa, mas desses três nichos, igualmente, o que testifica a pluralidade do trabalho de Imbert.

Personagens imbuídos de um desejo de retaliação, que se atiram sem medo a uma jornada contra quem desestabilizou a harmonia do seu lar mediante um crime e maculou a honra de sua família com o sangue de um inocente nunca serão demais no cinema. A premissa se mostra verdadeira no momento em que se começa a listar algumas produções que se aprofundam sobre o argumento do acerto de contas, caso de “O Regresso” (2015), do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu, provavelmente o filme mais impactante no gênero, com um herói que não sai um milímetro da linha, ainda que seja ultrajado de todas as maneiras possíveis.
Malgrado também busque reparação pela desgraça que se abate sobre ele, o protagonista de “Vingança e Castigo” não tem nada de bom moço. A trama, debute de Jeymes Samuel no comando de um longa — Samuel já havia feito o curta-metragem “They Die by Dawn”, em 2013 —, não é um primor de inovação quanto ao gênero, mas o diretor se empenha em conduzir seu elenco afinado rumo a um épico de faroeste, uma das gratas surpresas de 2021, dada a originalidade com que constrói sua história.
Sem dúvida, Jonathan Majors é uma das razões do sucesso do filme. Dando vida a Nat Love, o líder de uma gangue que assistira à morte brutal dos pais por Rufus Buck, do também ótimo Idris Elba, Majors revela, enfim, uma faceta de seu talento que passou batida para outros realizadores. Seu Nat Love é um vilão medonho, mas não deixa de ser carismático, principalmente quando entra em cena Zazie Beetz encarnando a sensual Stagecoach Mary, um ex-caso do protagonista, com quem bate uma bola redonda até o desfecho da história. Quanto ao embate com Buck, se desenrola o arco dramático central do enredo, uma vez que o veterano, até o momento cumprindo prisão perpétua, é inexplicavelmente anistiado de seus crimes. Antes levando uma vidinha pacata, evitando meter-se em encrenca (ainda que nem sempre conseguisse), o protagonista se resolve por assumir de vez seu lado marginal e se investir de uma natureza justiceira, contando com aliados poderosos. O problema é que o outro lado se vale do mesmo expediente.