Posso ser quem eu quiser

Posso ser quem eu quiser

Posso ser quem eu quiser. O John Malkovich. A mulher de peitos caídos que rabisca a lousa. O reacionário de nariz em pé. O filho-da-mãe do papai. O cara que não sabe que nada sabe. O refugiado congolês que cruza o oceano para se encontrar com a morte no Rio. O robô que descobre amor em Marte. O senhorio do gabinete do ódio. O camponês apaixonado pela chuva. O Judas que perdeu as botas. O sonho de consumo da Scarlett Johansson. O guru que se suicida-se. O escritor mediano que se perde em redundâncias. Posso ser quem eu quiser. O homem de nove dedos. O mentecapto do saco de estrume. O andarilho que caminha solitário até derreter na estrada como se fosse um ser humano. Deus em carne e osso. O palhaço que chora pelos cantos de um circo conquanto ele seja redondo. Pessoa. O poeta não. Uma pessoa. Qualquer pessoa. Você por exemplo. Ou o Peçanha que odeia o próprio nome. O homem de coração nômade. Posso ser quem eu quiser. Agora. Sempre. Nunca. Tudo é uma questão de usar o advérbio de tempo mais adequado. O medalhista do nado de costas que nada de costas numa piscina infestada por piranhas. A meretriz que se chama Beatriz e que sonha em ser atriz mas se apaixona por um cliente e vai morar junto com ele na expectativa de ser feliz de completar essa trova ou de conhecer o Edu Lobo. O cara que seu pai não aprova. Aquele que não vai tirar você desse lugar. O seu lugar é onde a sua mente está. A menina que roubaria livros se não passasse tanta fome. O leão de chácara da jaula do Carrefour. A droga de um médico que administra bocas de cloroquina. Posso ser quem eu quiser. O poeta claudicante e viciado que fuma as pedras do caminho. A adicta em solidão. O sapo que engole gente ruim. O santo alcoólatra amém. O pároco genuflexo que lambe botas e bucetas. A freira que ainda sonha em ser mãe um dia sob os ataques da TPM. O PM com crise de identidade que chora mas a mãe não escuta. Posso ser quem eu quiser. O menino com um buraco de 12 nas costas. A legista que me amava. O homem que urina sentado. O fiscal de trânsito que aplica poemas a quem dirige com cuidado. A cuidadora que empurra essa cadeira. O velho demente que se conecta à luz do sol. A mulher que desiste de amar. O mar que devora os homens. O aleijado que volta a caminhar por milagre mas não faz a menor ideia para onde ir. Posso ser quem eu quiser inclusive eu você ninguém todos juntos e misturados ou a droga de um personagem perdido que ainda não foi criado.  

Eberth Vêncio

É escritor e médico.