A humanidade só foi capaz de subir tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais comezinhos, como o melhor lugar da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem correr o risco de morrermos envenenados, por exemplo. E essa hegemonia cognitiva sobre os outros animais não seria nada se não viesse acompanhada do aperfeiçoamento da força física. Para tanto, o homem teve de se impor. Primeiro, subjugou os bichos que considerou mansos, e os fez trabalhar para si. Depois, a fim de ser capaz de vencer feras mais corpulentas e ferozes do que ele múltiplas vezes, desenvolveu ferramentas como tações, lanças e fundas e, assim, ampliou seus territórios. A cada ano, o homem desenvolve novas tecnologias para suprimir demandas que nunca teve, mas, surpreendentemente, o gênero humano segue sem conseguir se dominar e uma característica ainda se lhe resta igual como desde os tempos das cavernas: o homem não tem nenhum poder contra o que transcende o material.
Paco Plaza é decerto um dos maiores talentos na arte de desafiar a capacidade do homem de questionar-se acerca de assuntos os mais diversos, tomando o terror por ponto de partida. “Verónica — Jogo Sobrenatural” (2017) não entrega o ouro todo de uma vez; para ter o que quer, deixar o público mesmerizado com a trama de possessão demoníaca que se estende ao longo do enredo, em graus variados de intensidade, Plaza se ancora num roteiro prensado a frio, escrito em coautoria com Fernando Navarro. Para se entender o imenso sucesso que fazem essas narrativas sujas, grotescas, plenas de uma truculência que beira o irracional em meio a pessoas espantosamente comuns, há que se atentar para todo o entorno da história. A protagonista, Verónica, a Vero, é só uma menina que deveria estudar e sair com as amigas de vez quando, mas aos quinze anos, sua vida já parece um tanto fora do eixo. A performance mediúnica — com a licença do trocadilho — de Sandra Escacena, deixa claro que Vero não suporta aquela vida, mesmo que seu status na família seja fundamental para que os irmãos, Lucía, Irene e Antoñito, de Bruna Gonzalez, Claudia Placer e Iván Chavero, respectivamente, não tenham de parar de estudar, uma vez que a mãe, Ana, interpretada por Ana Torrent, troca o dia pela noite — e muitas vezes emenda um na outra — cuidando do bar que lhe deixou o marido ao morrer.
Por mais infeliz e exausta que possa estar, Vero não permite que Lucía, Irene e Antoñito notem seu olhar baço diante da vida, afinal eles não têm culpa de nada. Na verdade, Ana também não, e o que se depreende desse núcleo é que é melhor que ela se conforme, o que acaba acontecendo. No pouco tempo livre, planeja alguma atividade com Rosa, a melhor amiga vivida por Angela Fabian, que por seu turno tem se mostrado incomodamente próxima de Diana, de Carla Camera, a repetente da classe. Esse envolvimento súbito, claro, mexe com os brios de Vero, conflito dramático que passa ao largo do interesse do diretor, quando poderia ser mais bem explorado. Ainda que magoada, a personagem de Escacena ainda deseja participar do encontro que havia marcado apenas com Rosa, a fim de invocarem os seres do outro mundo pelo tabuleiro ouija, instrumento criado no século 19 para que vivos e mortos se comunicassem quando estes fossem chamados por aqueles. Rosa descobrira uma dessas peças no porão da escola, e a travessura só é possível porque lá fora alunos e professores se detêm em observar um eclipse, metáfora conveniente encontrada por Plaza.
O que se vê é o desdobramento típico de episódios dessa natureza, e Vero vai parar na enfermaria, momento em que se sabe que para a menina, moça feita, ainda não vieram as regras. Vero nunca menstruou, sintoma evidente de que sofre de um bloqueio qualquer, igualmente negligenciado por Plaza. Ela volta com os irmãos para casa, e manifestações sobrenaturais começam a interferir no cotidiano da família, atingindo inclusive o pequeno Antoñito, numa sequência exasperante. Os fenômenos só ocorrem porque Vero e as amigas se esqueceram de tomar um cuidado primordial, e por isso, as almas ímpias se melindraram.
Sempre há um componente farsesco, ridículo, nesses enredos que amalgamam a fantasia de entidades que deixam o além-mundo e vêm atormentar os que vivem, com ou sem convite, e o que há de concreto nessas ocorrências. Ancorando a história num episódio verídico passado em Madri, em 1991, “Verónica” resvala em clichês que poderia evitar, como o da freira cega, que recebe o apelido preconceituoso e cruel de Irmã Morte — como crianças são más às vezes! — um desempenho notável de Consuelo Trujillo. Inteligentemente, Plaza se abstém de valer-se dos recursos mais usuais nas produções do gênero, e centra seu filme no terror psicológico, com tudo de melhor que a estratégia possa conter. A realidade de Verónica ter sido possuída pelo espírito liga-se diretamente à sua debilidade física, atrelada, por evidente, à ausência física do pai, que lhe aparece em sonho, nu, certa feita — e outras inferências se podem elaborar a partir de então. Por outro lado, o embasamento de “Verónica” num evento real, fartamente documentado pela polícia madrilenha, presta-se a conferir ao argumento o cuidado de se elaborar as reviravoltas que se quiser na trama, desde que não se ultrapasse a risca da verdade fática.
Muito diferente da esmagadora maioria do terror que se conhece — e comodamente se admite por fílmico —, a principal qualidade de “Verónica — Jogo Sobrenatural” é suscitar o pânico em doses homeopáticas. Tem gente que prefere tomar sua parte de uma talagada só.
Filme: Verónica — Jogo Sobrenatural
Direção: Paco Plaza
Ano: 2017
Gênero: Terror
Nota: 8/10