A infância, lugarzinho mágico onde o homem se refugia sempre que confrontado com seus grandes dilemas existenciais, cede lugar ao inferno chamado adolescência, uma etapa da vida bastante peculiar. Há uma ínfima minoria que teve uma adolescência feliz — ou ao menos livre dos tantos conflitos egoicos em que somos nossos maiores adversários —, um paradoxo por si só, e acintosamente reúne as lembranças douradas com que humilha a vidinha ordinária dos simples mortais. A maior parte dos seres humanos, todavia, recorda-se da adolescência com um travo de amargor, que a idade madura, sabiamente, trabalha, elabora e refina, a fim de que não reste trauma grande o suficiente para colocar em risco tudo o que ainda há por viver, não importa se muito ou se pouco.
Essas duas existências paralelas dentro de uma mesma vida não deixam de ser uma dádiva com que nos presenteia a Providência, cabendo a cada um tirar a lição mais evidente e seguir tentando, até a cartada final. Muitas vezes é preciso abandonar a vida que levávamos até determinado ponto de nossa trajetória quanto a fazer o que será melhor para nós mesmos, evitando enveredar para a estrada larga e sombria da perdição, da qual podemos não regressar, e mesmos nossos maiores deslizes nos servem de incentivo. Nem todos conseguimos ser sábios o bastante para aprender apenas com os erros alheios e teimamos em dar nossas tantas cabeçadas, muitas vezes já conscientes de como tal comportamento vai acabar, ainda que a verdade seja mesmo que a vida está sempre a nos preparar situações para as quais nunca nos julgamos suficientemente serenos, não raro durante a tal da adolescência, em que a mais sensata das criaturas sempre mete os pés pelas mãos.
Essa fase intermediária da vida, nebulosa, cinzenta, plena das suas indefinições, desperta o interesse do cinema há muito. Produções hoje sob a égide do cult, tão icônicas que passam ao largo de críticas mais aprofundadas, a exemplo de “Curtindo a Vida Adoidado” (1986), dirigida por John Hughes (1950-2009), e “Kids” (1995), de Larry Clark, inspiraram cineastas ao redor do mundo a falar acerca das incongruências de indivíduos no limite perigoso entre sanidade e loucura. Não por acaso, filmes que se debruçam sobre o tema logo conquistaram lugar de destaque na preferência do público, e em 2022 há pelo menos três, filmados fora dos Estados Unidos, que se mostraram tão fortes que figuram entre os favoritos na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: “A Mão de Deus”, do italiano Paolo Sorrentino; “A Noite do Fogo, da salvadorenha-mexicana Tatiana Huezo; e “The Falls”, do taiwanês Chung Mong-hong — desses, apenas Sorrentino já foi agraciado com um Oscar na categoria, por “A Grande Beleza” (2014). A Bula reúne aqui resenhas sobre os três trabalhos, tão distintos entre si, mas com uma característica em comum: exaltar a necessidade de se tirar o véu também da adolescência, tão vítima de mistificações grosseiras. Os filmes estão elencados em ordem alfabética, uma vez que foram todos lançados em 2021, sem outros critérios de classificação. Agora, é só ler, assistir e escolher seu preferido.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
A bagagem como documentarista de sucesso é o que capacita Tatiana Huezo a se desdobrar sobre uma narrativa tão intrincada quanto a guerra travada entre o governo do México e os cartéis de drogas, o flagrante desrespeito aos direitos humanos e o tráfico de mulheres para fins sexuais. Em grande parte das vezes, o que se entende por polícia não cumpre suas funções constitucionais e, ou por inépcia ou por se vender mesmo, não faz nada. Eis o cenário perfeito para que o sequestro de mulheres e meninas denunciado no longa continue à toda carga, e as que não podem ser aproveitadas pelas quadrilhas pagam com a própria vida, ocasião em que seus cadáveres são espalhados pelos vilarejos como forma de aviso. Huezo, salvadorenha radicada no México, constrói uma trama estarrecedora, e tanto pior porque explorada sob a perspectiva de uma criança. Por mais que os adultos pensem que os pequenos não têm a devida dimensão do horror que acontece à sua volta, Ana fareja o perigo e transpira pânico, como todo mundo. A personagem de Ana Cristina Ordóñez González, numa performance de gente grande, é a tradução perfeita da vida daqueles aldeões.
“A Mão de Deus” remonta à Nápoles de 1986, quando da adolescência do diretor, Paulo Sorrentino. Seu protagonista e alter ego, Fabietto Schiesi, uma interpretação mediúnica de Filippo Scotti, é um garoto de 17 anos, tímido e observador como poucos, à procura de sua própria identidade numa família numerosa, onipresente, invasiva. Ele é o único a deixar escapar algum laivo de vergonha diante da sucessão de eventos absurdos que definem o convívio com os parentes — e o imbróglio místico em que se mete a tia materna, Patrizia, de Luisa Ranieri, com um São Januário mostrado sob a figura de um fauno que corrompe senhoras casadas, logo no começo do longa, o ilustra bem. Acontecimentos como esses vão dando a tônica do roteiro, decerto o trabalho mais despretensioso e mais preciso de Sorrentino, em que os detalhes são fundamentais. Os instantes de (pouca) sensatez que permeiam as conversas, os olhares, os gestos — até comedidos, em se tratando de italianos, e italianos do Sul — precisam ser levados em conta a fim de que o todo faça sentido nessa comédia memorialística, que guarda uma grande tristeza no meio do enredo.
A pandemia é só um trampolim em que Chung Mong-hong sobe para se projetar e finalmente se lançar sobre o que de fato quer discutir em “The Falls”. No Oriente — na China, sobretudo —, um pai pode ser tão distante do filho quanto o macaco do cão, mas os laços entre a mãe e sua prole às vezes pode apertar tanto que chega a sufocar. Chung Mong-hong consegue como poucos absorver o zeitgeist, o espírito que representa o tempo em que vive, a fim de exercer seu ofício da melhor forma, dando um passo depois do outro, concentrando-se na produção a que se dedica, sem muita ideia sobre como vai se sair, principalmente diante da crítica. Quanto ao público, esse fica cada vez mais preso pelo teor encantatório de tudo o que diretor leva à tela, e o espectador, sim, se pergunta se algum dia o taiwanês há de fazer alguma coisa que não seja genial, ansiando, por óbvio, que a resposta seja sempre negativa. “The Falls” honra a tradição taiwanesa, iniciada em 1980, de conseguir emplacar um filme na seleção da Academia. Talvez esteja chegando a hora de avançar uma etapa e mostrar o valor do cinema feito por gente tão aguerrida.