Inacreditável e cheio de reviravoltas, lançamento de 2022, da Netflix, entrega uma história de cair o queixo

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A necessidade de ser amado, a carência, a ilusão da felicidade rápida, sem riscos — ou, se tanto, com riscos previamente calculados —, tem levado muita gente a perder a cabeça (e algumas centenas de milhares de dólares). Cecilie Fjellhøy se deixou levar por algumas fotos e muita lábia, primeiro por meio de um aplicativo de encontros românticos, em seguida num tête-à-tête regado a croissants e café com chantilly no restaurante do Four Seasons Hotel em Londres, em janeiro de 2018. Fjellhøy estava mesmerizada pelo sujeito bem-apessoado, que envergava ternos bem cortados — um fetiche seu —, dirigia carros de luxo e cruzava o mundo a bordo de seu jato particular. Ele dizia se chamar Simon Leviev e Fjellhøy, norueguesa de 29 anos que se mudara para a capital do Reino Unido a fim de fazer uma pós-graduação, estava sem defesa. A vida parecia ter-lhe destinado o mais belo dos presentes ao lhe mandar aquele príncipe, herdeiro de Lev Leviev, o magnata israelense dos diamantes. Tão desarmada estava que, dias depois, já aceitara viajar com ele para Sófia, na Bulgária, sozinhos os dois, deixando desesperadas as amigas mais próximas. O pretexto era tratar de negócios — e eram negócios mesmo. Só o que Fjellhøy não sabia era que ela era os negócios de Leviev.

“O Golpista do Tinder” é um banho de água fria nos sonhos dourados dos últimos românticos ao redor do globo, mulheres sobretudo. Lançado em 2022, o documentário da diretora Felicity Morris não insinua que as mulheres sejam todas débeis-mentais que caem na primeira esparrela de um bonitão qualquer, ainda mais se se disser rico. O que acontece é que esse gênero de homem refinou muito seu talento para delinquir, e agora com muito menos esforço, uma vez que os aplicativos que sediam seus perfis não se envolvem nos desdobramentos dos approaches das conversas que seus usuários — todos presumivelmente adultos — mantêm com o auxílio da plataforma (é o caso de se averiguar se não estariam sendo coniventes de propósito, com terceiras intenções). Já alimentei um perfil no software a que Morris se refere e, se serve de consolo, posso dizer que malandragem, neurastenia, psicopatia e, na melhor das hipóteses, boçalidade, burrice e futilidade não são “atributos” exclusivos dos homens. Sinal dos tempos. 

Completamente enredada, e mais rápido do que se poderia prever, Fjellhøy cedeu à conversa de Leviev, que se dizia perseguido por uma quadrilha contratada pelos concorrentes de seu pai para constrangê-lo nas boates para VIPs que frequentava. Logo começaram a pipocar no telefone dela fotos em que se via Peter, o guarda-costas do playboy, com a cabeça rachada e Leviev sujo com seu sangue. O que se lia nas entrelinhas — que ele sempre fazia questão de explicar — era que não poderia mais usar seu próprio cartão de crédito, ou seja, ela teria de socorrê-lo, e o fez prontamente, afinal era sua namorada (ou, pelo menos, se via assim). Não muito tempo depois, Leviev estourara o limite do cartão de Fjellhøy, que fora aconselhada por ele a pedir empréstimos em bancos e outras instituições financeiras. Para que não corressem o risco de alguma negativa, o falso bilionário conseguira fazê-la passar por sua funcionária, cujo salário se aproximava dos 100 mil dólares mensais. Estava aberto o caminho para o inferno de Fjellhøy, que acumulou uma dívida de 250 mil dólares enquanto esteve com o falsário.

A história despertou o interesse do “Verdens Gang”, um dos jornais mais importantes da Noruega, e sem muita demora se desvendou todo o mistério por trás de Leviev e seu modo de operar. Simon Leviev, na verdade Shimon Yehuda Hayut, nascido numa família de judeus ortodoxos de classe média do subúrbio de Jerusalém, voava num avião alugado, pago com o que conseguira espoliar de outra mulher; Peter, o guarda-costas, era um amigo, que recebia pela representação, mas cujo envolvimento nos golpes não pôde ser comprovado pela polícia. Até a mulher que se apresentava como sua ex-companheira, mãe de seu filho, e jurava que ele era um homem de bem, já havia sido vítima de seus trambiques, mas seguia com ele, por razões que a razão desconhece, mas o coração talvez justifique. Em 2017, depois de cumprir pena na Finlândia, Hayut se tornara oficialmente Simon Leviev, tudo dentro da lei. Só o que fica difícil de engolir (e digerir) em “O Golpista do Tinder”, e a culpa não é de Morris, é que Leviev tenha conseguido seguir fazendo vítimas, valendo-se do mesmo expediente, e atingindo mulheres com descrição em comum: brancas, europeias, quase sempre escandinavas, bonitas, bem-sucedidas. E com privações emocionais extremas.

Em paralelo à história de Fjellhøy, a diretora apresenta ao público Pernilla Sjoholm, da Suécia, com quem Leviev conseguira seguir todo o roteiro com que ludibriara a norueguesa, e Ayleen Charlotte, holandesa de Amsterdã, que engendrara contra o malandro uma vingança que lhe tirou as calças. No entanto, são os relatos de Fjellhøy e Sjoholm os que de fato captam a atenção do espectador. Temos a curiosidade mórbida de saber até que ponto um criminoso como Leviev pode ir a fim de saciar seus ímpetos vazios, para que o faz e por quê. É claro que há um enredo de necessidades materiais, e talvez negligência afetiva, por trás de um comportamento tão torpe, o que faz do golpista do Tinder não propriamente um personagem. Leviev mandava flores nos aniversários de suas namoradas — Fjellhøy confidencia a certa altura de seu depoimento que aquelas foram as flores mais lindas que jamais recebera —, era atencioso, era gentil. As bolsas e sapatos de grife, os jantares caros, as noitadas em clubes da moda — ainda que Sjoholm diga que aqueles não sejam o tipo de ambiente que lhe apeteça frequentar — contavam, mas acredito que o que não se viu em “O Golpista do Tinder”, o que só Leviev, Fjellhøy, Sjoholm e Charlotte viveram, cada uma no seu tempo, é o que verdadeiramente as impactou. Tanto que o documentário tomou corpo.

Morris é hábil em fazer referência às investigações do “VG”, enquanto frisa o caráter eminentemente sentimental e íntimo de seu documentário, escavando as mensagens de texto e de áudio com ameaças de Leviev para as três mulheres, o que terminou por levá-lo ao cárcere, em 2019, na Grécia, de onde foi extraditado para Israel. Simon Leviev foi condenado a 15 meses de prisão por roubo, fraude e falsidade ideológica, mas foi liberado após cinco meses, por bom comportamento. A diretora tentou contato com Leviev, por meio de seus advogados, mas obteve como resposta, do próprio falsário, uma nova intimidação. Leviev se declarara inocente de todas as acusações e admoestou Morris a retirar o filme de circulação, sob risco de ter de responder a processos por difamação e calúnia. Ainda que tivesse sucesso em seus pleitos — o que não seria nada admirável, visto que é um homem livre e Fjellhøy, Sjoholm e Charlotte continuam obrigadas a quitar as dívidas feitas em seu nome pelo estelionatário —, “O Golpista do Tinder” presta-se a um documento e mesmo um tutorial de como se ver livre de enroscos judiciais que começam com palavras doces e, quem sabe, presentes caros, já que pesquisar as citações do pretendente em buscadores de conteúdo na web nem sempre adianta.


Filme: O Golpista do Tinder
Direção: Felicity Morris
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.