Com o lançamento de “Eduardo e Mônica”, dirigido por René Sampaio, 2022 torna-se o segundo ano da Legião Urbana no cinema. O primeiro foi 2013, quando estreou a cinebiografia “Somos Tão Jovens”, de Antônio Carlos da Fontoura, e logo em seguida “Faroeste Caboclo”, também de René Sampaio. “Eduardo e Mônica” vale por dois.
O vídeo linkado discute a trajetória da Legião Urbana no cinema, mostrando seus bons e os maus momentos, até chegar na recém-lançada adaptação da história da “menina com tinta no cabelo” e do “boizinho que tentava impressionar”. Vale a pena assistir? Assista o vídeo e descubra.
Enquanto isso, convêm relembrar os dois filmes lançados anteriormente. “Somos Tão Jovens” foi mal recebido pela crítica. Foi considerado superficial e ingênuo. Uma espécie de Malhação em Brasília. Não deixa de ser verdade, mas não é uma avaliação inteiramente justa.
A comparação inevitável é com o longa-metragem “Cazuza: O Tempo não Para” (2004), dirigido pela dupla Sandra Werneck e Walter Carvalho, tendo Daniel de Oliveira como protagonista. Essa comparação não se dá apenas pela filiação geracional e temática entre os artistas retratados, mas pelo fato de terem alimentado certa “rivalidade amigável” ao longo de suas respectivas carreiras. Estranhamente, Renato Russo foi limado do roteiro no filme sobre Cazuza. Trata-se de um imperdoável erro de dramaturgia, pois o vocalista do Legião Urbana foi o responsável direto por uma representativa virada na carreira de Cazuza. Sobre seu amigo e rival, Cazuza afirmou em uma entrevista de 1989: “Quando vi aquelas letras pensei: ‘Pô, esse cara é melhor do que eu. Isso não pode ficar assim’. Senti uma puta inveja, mas daquelas positivas, que te incentivam a criar. E acho que a linha seguida a partir de ‘Brasil’ teve muito a ver com isto’”.
Passaram-se oito anos entre um filme e outro. Nesse “último” e “póstumo” duelo fílmico, Renato Russo saiu-se melhor. Foram dois os motivos principais: a escolha do corte cronológico e a atuação do protagonista.
O maior acerto de “Somos Tão Jovens” foi optar por cobrir apenas os anos de formação de Renato Manfredini Júnior, o jovem carioca radicado em Brasília, filho de um economista do Banco do Brasil, fã de John Lennon, focando em sua transformação em Renato Russo, líder do movimento rock de Brasília. A fase punk, a vida em família, a relação com os amigos e amores, carreira solo como Trovador Solitário entre outras coisas. O filme sobre Cazuza se perdeu exatamente na opção de cobrir toda a vida do biografado. Geralmente, tal estrutura dramática funciona melhor quando deliberadamente se trabalha o mito e não o homem, como fez Oliver Stone com Jim Morrison, em “The Doors” (1991). Em produções nas quais impera a estética do realismo semidocumental, como quase a totalidade das cinebiografias nacionais, fica a sensação de pressa, atropelo e, sobretudo, incompletude.
O segundo trunfo de “Somos Tão Jovens” é seu protagonista, o ator Thiago Mendonça. Ele interpretou o cantor Luciano em “Dois Filhos de Francisco”, e garantiu seu lugar na história do cinema fazendo uma ponta em “Tropa de Elite”, como o “estudante usuário” esbofeteado pelo capitão Nascimento no melhor estilo General Patton. Thiago Mendonça, mesmo sem ser fisicamente parecido com Renato Russo, por meio de um apurado trabalho corporal e de voz, interpretou não “o” Russo, mas “um” Russo convincente e psicologicamente complexo. Não se limitou a imitar os trejeitos do cantor, mas construiu sua visão sobre ele, evitando cair na caricatura. Talvez seu maior mérito tenha sido emular o timbre vocal de Russo, tanto falando quanto na famigerada impostação operística ao cantar. Sua atuação supera o elogiado trabalho de Daniel de Oliveira como Cazuza, retratado como um “exagerado” bidimensional, em função do roteiro de “Somos Tão Jovens” ter lhe dado espaço para mostrar a personalidade multifacetada de Russo.
Mas “Somos Tão Jovens” não é um monólogo. Seu problema mais evidente é o elenco de coadjuvantes jovens. Descontando algumas exceções, como as atrizes Bianca Comparato interpretando Carmem Lúcia, irmã de Renato Russo, e Laila Zaid, como a amiga Ana Cláudia, o conjunto é sofrível. A inexperiência pesou. Em muitas cenas, Thiago Mendonça parece estar atuando com um fundo azul. Lembrou Andy Garcia tentando contracenar com a inexpressiva Sophia Coppola em “O Poderoso Chefão — Parte III”.
E “Faroeste Caboclo”? É um bom filme? Sim, sem dúvida, considerando os padrões tupiniquins e a proposta de sua estrutura interna. A direção de René Sampaio é ágil e frenética. O protagonista João de Santo Cristo é vivido com energia pelo ator Fabrício Boliveira. A bela Ísis Valverde encarna uma Maria Lúcia usando seu infalível carisma novelesco. Todo o elenco de coadjuvantes, do vilão Jeremias (Felipe Abib) ao primo Paplo (César Trancoso), é competente, com destaque para Antônio Calloni, como um policial corrupto. Para lamentar, apenas o desperdício da presença de Marcos Paulo, fazendo um senador (quando? onde?), pai de Maria Lúcia. A parte técnica, da fotografia até a montagem, apresenta ótimo nível e a direção de arte, embora com poucos recursos, não compromete. A trilha sonora de Lucas Marcier é discreta e certeira, fazendo uso comedido da música título. Palmas para a criativa homenagem que fizeram a Legião Urbana numa cena de show. O ponto baixo fica para a exageradamente solene narração em off, quase tão desnecessária e fora de tom quanto o off presente na versão de “Blade Runner”, de 1982.
Segunda pergunta: o longa-metragem “Faroeste Caboclo” é uma boa adaptação da música? Não exatamente.
Pode ser considerado satisfatório se o objetivo do espectador for se divertir assistindo violência, vingança e amor bandido, num filme de ação com sotaque nacional. Mas peca em diversos quesitos ao apresentar-se como adaptação de uma história muito, talvez excessivamente, conhecida. O que pode salvá-lo neste aspecto é que, talvez, o espectador fique de tal modo anestesiado pela overdose de estímulos sensoriais oferecidos que não se dê conta dos problemas.
René Sampaio optou por ficar na superfície e entregar um produto industrialmente bem-feito, que obedece a todas as convenções do gênero ação/policial, mas pouco profundo. Não que se deva exigir complexidade filosófica desses filmes, mas exemplos como os de “Tropa de Elite” (2007), “O Homem do Ano” (2003), “O Invasor” (2001) e “Cidade de Deus” (2002) mostram que é possível e desejável sair do senso comum. Trata-se de um filme milimetricamente planejado para impressionar o público médio, que ingenuamente ainda se encanta com edição rápida, tiros, sangue falso e um pouco de sexo, para incrementar a emulação de transgressão. Essa opção pela violência gráfica e as infindáveis citações aos faroestes de Sérgio Leone, dá a falsa sensação de sofisticação temática e formal, responsável por agradar intelectualmente os fãs do Legião Urbana que ficaram decepcionados pela excessiva suavidade de Somos Tão Jovens.
Felizmente, René Sampaio foi mais feliz com “Eduardo e Mônica”. Se em “Faroeste Caboclo” ele reduziu um épico, agora ele ampliou o material base de maneira muito interessante. O que ele fez? Assista o vídeo linkado e descubra.