Aclamada por seus documentários, Tatiana Huezo começou a se ressentir da falta de poesia em seu trabalho. Tudo o que não pôde sonhar em seus filmes anteriores — caso do excelente “El Lugar Más Pequeño” (2011), sobre a guerra civil de El Salvador (1979-1992), seu país natal —, Huezo faz questão de fantasiar em “A Noite do Fogo” (2021), sem prescindir da essência de contestação política que marca sua carreira.
É justamente essa sua bagagem histórica que lhe capacita a se desdobrar sobre uma narrativa tão intrincada quanto a guerra travada entre o governo do México e os cartéis de drogas, o flagrante desrespeito aos direitos humanos e o tráfico de mulheres para fins sexuais. Em grande parte das vezes, o que se entende por polícia não cumpre suas funções constitucionais e, ou por inépcia ou por se vender mesmo, não faz nada. Eis o cenário perfeito para que o sequestro de mulheres e meninas continue à toda carga, e as que não podem ser aproveitadas pelas quadrilhas pagam com a própria vida, ocasião em que seus cadáveres são espalhados pelos vilarejos como forma de aviso. Huezo, salvadorenha radicada no México, constrói uma trama estarrecedora, e tanto pior porque explorada sob a perspectiva de uma criança. Por mais que os adultos pensem que os pequenos não têm a devida dimensão do que acontece, Ana fareja o perigo e transpira pânico, como todo mundo. A personagem de Ana Cristina Ordóñez González, numa performance de gente grande, é a tradução perfeita da vida daqueles aldeões.
Numa das primeiras sequências do longa, Rita, a mãe de Ana, esconde a filha num buraco na terra, apavorada com a iminência de novas ofensivas das guerrilhas do narcotráfico, que sempre trazem em sua esteira a presença dos sequestradores de mulheres. A personagem de Mayra Batalla está tomada pelo pavor, e ainda tem de exercer marcação cerrada sobre o marido, que viajou para os Estados Unidos a fim de enviar dinheiro para o sustento da família, mas sumiu. A única perspectiva profissional no lugarejo é a coleta de papoula, mas as crianças podem frequentar a escola — pelo menos enquanto há um professor, prestes a se desligar da turma por causa da criminalidade inclemente.
As crianças se viram como podem quanto a não replicar o terror e a paranoia dos adultos. Ana e suas amigas inseparáveis, María, vivida por Blanca Itzel Pérez, e Paula, de Camila Gaal, criaram uma brincadeira em que as três devem entoar uma mesma canção sustentando a mesma nota, expediente que lhes serve de terapia, enquanto aos mais velhos só resta se entregar à tortura de pensar que a vida ali sempre pode ficar pior. Aos poucos, a tensão se espalha por toda parte, e os cidadãos são obrigados a levantar barricadas contra os membros dos cartéis. Às garotas, resta seguir com o hábito de usar o cabelo curto, não por causa dos piolhos, como atesta Rita, mas para passarem por meninos e não serem capturadas. Mas mesmo que consigam escapar do domínio do submundo, continuam à mercê da pobreza e da ignorância, outros dos males que assolam esses povoados e sufocam qualquer possibilidade de uma vida verdadeiramente livre.
Um corte no tempo leva “A Noite do Fogo” um pouco mais adiante. As garotas agora têm pouco mais de doze anos, continuam com a brincadeira de cantar a mesma música no mesmo ritmo, usam o cabelo excessivamente curto, como antes, mas agora também apresentam os conflitos típicos das meninas-moças e sentem-se todas atraídas pelo mesmo homem, o professor, que resiste com elas. Ser mulher ainda é um grande desafio, e a chegada da puberdade para Ana, coroada com o sangue da menarca, é motivo de suplício para Rita. A protagonista, agora encarnada por Mayra Membreño, sabe que a mãe tem razão, mas não acha justo se abster de assistir às aulas, nadar no rio, manter conversas despretensiosas com María e Paula, rir. Viver, enfim.
A fotografia de Dariela Ludlow ressalta as cores da selva, das águas, a fim de evocar a atmosfera agreste que dota o filme de beleza, mas também da truculência daquele cenário. A inadequação das pessoas que ali vivem diante das injúrias a que são submetidas se reflete no semblante de Ana, tanto a menina quanto a moça, num trabalho de composição primoroso de González e Membreño. Muito do valor de “A Noite do Fogo” como obra de arte cabe a elas, que, em conjunto, são capazes de elaborar uma personagem tão carismática quanto vigorosa, mormente quando Ana precisa encarar a realidade de ser uma mulher feita, a despeito das melenas tosadas. Uma ameaça com a qual terá de aprender a existir doravante.
Tatiana Huezo é uma das diretoras mais talentosas do novíssimo cinema. Seu traquejo em manejar situações em que o enredo caminha para a tragédia ao mesmo tempo em que exalta a poesia por trás dessas pessoas — e mesmo dessas perturbações — é uma qualidade que só grandes profissionais do cinema têm, quer se dediquem à verdade do documentário ou à ilusão das histórias ficcionais.
Filme: A Noite do Fogo
Direção: Tatiana Huezo
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10