No dia 2 de fevereiro de 1922, ficaram prontos os dois primeiros exemplares do romance “Ulisses”. O autor, o irlandês James Joyce, estava ansioso porque fazia aniversário de 40 anos naquela data e morava em Paris. Um dos volumes tinha endereço certo: a vitrine da livraria Shakespeare and Company, mantida por Sylvia Beach na capital francesa. Ela havia sido a única editora que topara a publicação de uma obra que nasceu polêmica e até carrega a fama de ser um livro difícil para leitores e leitoras.
Se “Ulisses” já provoca em todo o mundo comemorações anuais em 16 de junho (dia em que se passa a história do livro), o centenário vai deixar suas marcas. Novas edições do livro e inúmeras lives de internet prometem a celebração à altura para um romance e um autor dos mais cultuados nos últimos 100 anos. No Brasil, o tradutor Caetano Galindo está no comando das festividades, no papel de maior divulgador da obra joyceana. Seu curso de dez aulas magníficas sobre o livro está no YouTube.
A pergunta que se ouve dos novos leitores é: vale a pena enfrentar cerca de 800 páginas de um livro que todos dizem ser complicado demais? A melhor resposta ainda é a de um professor que tive e incentivava a ferro e fogo os estudantes de 17 anos a ler o “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa. “Vai lendo, mesmo sem entender muita coisa, ou vai se perdendo na história. Vale a pena chegar ao final, tem uma recompensa”, dizia ele. Em outras palavras, devemos mergulhar nos livros difíceis.
“Ulisses” é uma obra que sempre merece a ajuda de um guia de leitura. Repito: a recompensa é grande. Trata-se de livros de especialistas com os quais podemos conversar, mesmo imaginariamente. A escrita deles tem mesmo o tom da conversa. A melhor opção no mercado é, sem dúvida, “Sim, Eu Digo Sim: Uma Visita Guiada ao Ulisses de James Joyce” (2016), de Caetano Galindo. Outro livro-guia é “Homem Comum Enfim” (1994), de Anthony Burgess, o mesmo autor do romance “Laranja Mecânica”.
Atravessar a odisseia dos personagens Leopold Bloom e Stephen Dedalus é uma jornada pessoal. James Joyce imaginou um dia inteiro de andanças das duas figuras pelas ruas de Dublin, capital da Irlanda. Aliás, aquela pequena ex-colônia inglesa produziu uma galeria de autores e obras de dar inveja a qualquer um, todos eles mundialmente conhecidos: Oscar Wilde, Bernard Shaw, William Butler Yeats, Samuel Beckett, Flann O’Brien, Seamus Heaney, Colm Tóibín e John Banville.
Tradutor da crise
Nessa tradição fortemente católica e com peso do colonialismo inglês, James Joyce foi o irlandês que alcançou a maior reputação na República Mundial das Letras. Tornou-se um sinônimo de ousadia e ícone do modernismo literário do século 20. O crítico italiano Franco Moretti tem a explicação grandiosa para a escrita joyceana: “Ulisses” conseguiu traduzir em romance a crise maior da economia, da política e cultura de cem anos atrás. A estrutura do romance internaliza o drama e a tragédia do mundo moderno.
“Existe uma ‘homologia estrutural’ entre a natureza social específica da crise britânica e a estrutura literária específica de ‘Ulisses’; se parecem mutuamente integradoras uma da outra”, diz Moretti, no livro “Signos e Mitos da Modernidade”. Ele acrescenta: “Como poeta da crise do capitalismo clássico em sua área clássica de desenvolvimento, Joyce nos oferece uma autópsia monumental de toda uma formação social”. A Inglaterra e seus satélites eram o centro da crise na virada para o século 20.
O personagem Leopold Bloom é um corretor de anúncios publicitários que passa o dia 16 de junho de 1904 (data da trama) pelas ruas de Dublin e com a cabeça nas suspeitas de infidelidade da esposa Molly. A publicidade, segundo Moretti, é a chave usada por Joyce para capturar a dissolução do capitalismo dos primeiros anos do século 20. Era um mundo muito parecido com o de hoje: alta fragmentação social, euforia com liberalismo e eterna ameaça de conflito entre países (concretizada pela Guerra de 1914 a 1918).
Ao mesmo tempo, Stephen Dedalus é o jovem intelectual de uma época que despreza o pensamento e valoriza o dinheiro. O personagem já havia sido o protagonista do romance anterior de James Joyce, “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916). Em constante penúria para sobreviver, ele leciona numa escola e anda com amigos beberrões. O ponto alto do romance é o encontro às altas horas da noite, que simboliza a união de um pai (Bloom) que perdeu um filho pequeno e de um sujeito (Dedalus) em busca de um pai.
O enredo pode parecer simples, mas Joyce não vende barato. Os leitores são exigidos ao máximo. Isso porque a narrativa é conduzida a partir dos pensamentos dos personagens, a técnica que ficou conhecida como “fluxo de consciência”. Moretti prefere chamar acertadamente de “fluxo de inconsciência”. De repente, Dedalus está caminhando na praia e mistura o que está vendo com os olhos e os pensamentos em devaneio. A escrita vai acompanhando essa viagem pela linguagem na cabeça dos personagens.
Leituras múltiplas
As primeiras reações dos leitores e leitoras foram de desespero. Difícil demais de entender aquela narrativa contada toda a partir dos pensamentos mais aleatórios dos personagens — que por sinal têm fome, vão ao banheiro, sentem desejos sexuais. Os corpos falam em “Ulisses”, sem limitações de forma e conteúdo. Não por acaso apenas uma livraria de Paris topou a publicação do livro. Nos Estados Unidos, abriu-se um processo judicial para barrar a edição, sob acusação de pornografia e o que mais se imaginar.
Bem sintomática é a sentença do juiz John Woosley, que finalmente liberou “Ulisses” para os norte-americanos em 1933: “Como afirmei, ‘Ulisses’ não é um livro de leitura fácil. É, alternadamente, brilhante e tedioso, inteligível e obscuro. Em muitas partes parece-me desagradável, mas, apesar de conter, como lembrei acima, muitas palavras geralmente consideradas vulgares, não encontrei nada que me pareça vulgar por puro amor à vulgaridade. Cada palavra do livro contribui como uma peça de um mosaico”.
O crítico brasileiro Fabio Akcelrud Durão fez um belíssimo inventário das leituras de “Ulisses” desde a sua publicação. Como a dificuldade de se entender o livro sempre foi tópico de discussão, ele apontou quatro momentos de busca de “coerência” no romance joyceano por parte de quem o lê. Segundo ele, os primeiros leitores apontaram a inédita destruição da linguagem e da narrativa. Predominou a perplexidade de resenhistas e até de figuras tarimbadas como o psicólogo Carl Jung.
“Não há naquelas 735 páginas nenhuma repetição óbvia, nem mesmo uma única linha abençoada na qual o leitor que vem sofrendo de longe possa repousar; não há lugar algum onde ele se possa sentar, inebriado de memórias, e contemplar com satisfação o trecho de estrada por ele percorrido, seja de 100 páginas ou mesmo menos”, assinalou Jung. “O fluxo impiedoso segue sem pausa, e sua velocidade ou viscosidade aumenta nas últimas 40 páginas até o ponto de se tornar insuportavelmente tenso.”
Segundo Durão, a leitura de “Ulisses” ganha luz no momento (o segundo) em que surgem interpretações da estrutura do romance. Uma das mais conhecidas é aquela que traça um paralelo do livro com a “Odisseia” de Homero. Dessa maneira, foi possível encontrar uma forma já conhecida para compressão da trama. Leopold Bloom seria um Ulisses no mundo sem a poesia épica e que não acredita em deuses. O herói é um sujeito comum de uma área urbana cujo corpo tem mil sensações e a cabeça gira e gira o tempo todo.
A leitura “estrutural” tornou o livro de Joyce legível, com linhas narrativas e fios da meada para guiar o leitor. Foi um certo alívio, mas só até o momento (o terceiro) que alguns leitores descobriram os “buracos” ou os pontos cegos do romance. Voltou a ideia de uma história com baixa coerência e linguagem opaca (nada transparente), graças aos grandes intérpretes pós-estruturalistas Derrida e Lacan. Houve descobertas de detalhes incríveis do livro, como a questão do diálogo de Joyce com ideias musicais.
O quarto e último momento seria o reconhecimento de todas as leituras anteriores de “Ulisses”. Para ser um clássico ou uma obra rica ao extremo, um livro literário de verdade estimula as mais variadas leituras, da narratologia à sociologia, passando pelas estéticas da recepção do leitor, a psicanálise e até pelos estudos pós-coloniais. Como diz Durão, no final das contas “Ulisses lê seus leitores”. o livro passa a gerar e formar seus próprios leitores ao longo dos anos e, também, séculos.