Novo filme da Netflix refuta a aura de santa que paira sobre uma das personagens mais icônicas do século 20: Anne Frank

Novo filme da Netflix refuta a aura de santa que paira sobre uma das personagens mais icônicas do século 20: Anne Frank

Raramente se falou tanto sobre uma pessoa comum por um tempo tão longo quanto se falou de Anne Frank (1929-1945). Frank foi cultuada ao longo dos anos, venerada como uma santa judia, uma mártir, quiçá a mártir mais célebre e mais viva no inconsciente coletivo, passadas mais de sete décadas de sua morte brutal aos 15 anos, em data incerta — os biógrafos divergem entre fevereiro e março de 1945, e não cravam um dia exato —, em Bergen-Belsen, campo de extermínio nazista em Hanôver, capital da Baixa Saxônia, na Alemanha.

Desde 1959, o cinema registra 34 filmes sobre a vida de Anne Frank, sob os enfoques mais diversos. “O Diário de Anne Frank”, de George Stevens (1904-1975), o primeiro e mais famoso, se destaca pelo rigor histórico com que se desdobra sobre a trajetória da protagonista, abrigada no sótão da casa de um comerciante simpático à causa judaica. Logo se seguiu uma enxurrada de produções congêneres, promovendo a figura da menina, ao mesmo tempo em que, ao fazê-lo, não deixavam de banalizar o assunto. Anne Frank tornou-se pop, cult, chique.

“Anne Frank, Minha Melhor Amiga”, lançado em fevereiro de 2021, esquadrinha a vida breve da personagem sob uma nova ótica, como o próprio título diz. Dando de barato que Hannah Goslar, retratada no livro “Memories of Anne Frank: Reflections of a Childhood Friend” (1997), de Alison Leslie Gold, sem edição em português, tenha sido mesmo a melhor amiga e confidente de Frank, resta esclarecer alguns pontos. Fica patente na adaptação do diretor holandês Ben Sombogaart, a partir do roteiro de Marian Batavier e Paul Ruven, que Frank e Goslar mantinham algumas diferenças, especialmente no que diz respeito à organização familiar. Pelo que se consegue depreender do longa, Goslar era mais feliz na vida doméstica que sua companheira, que por sua vez parece só se realizar quando estão juntas. É mais do que óbvio que autores de histórias tão nebulosas realçam as passagens da jornada de seus biografados que julgam mais merecedoras da atenção e da curiosidade do público — quando não reescrevem eles mesmos um bom bocado do que são capazes de levantar —, mas na versão de Anne Frank que Sombogaart escolhe reproduzir, a única característica não exatamente nova, mas que sempre gera paixões de parte à parte é a suposta homossexualidade da personagem, sufocada por gente que se diz tolerante, mas que não admite que sequer avente-se a possibilidade de tamanho sacrilégio. A visão equivocadamente hagiológica sobre Anne Frank cala qualquer tentativa de ao menos se deliberar sobre sua atração por garotas, como ela mesma fez questão de deixar claro num dos cadernos que passaram a compor o diário que lhe daria fama mundial pelos anos afora. Otto Frank (1889-1980), pai de Anne, editou esses escritos da forma como os encontrou — além das “confissões” lésbicas da garota, havia referências a sonhos eróticos, adultério e masturbação feminina, que o diretor acertada e corajosamente manteve em seu trabalho. Único entre os Frank a sobreviver às barbáries perpetradas por Hitler, Otto certamente pensou que devia esse tributo à natureza libertária da filha, vanguardista num tempo em que isso não rendia manchete de jornal — porque jornal livre não havia — nem aplausos de quem quer que seja. Talvez nem de seu próprio pai.

Além de não se permitir patrulhar, um dos grandes acertos de “Anne Frank, Minha Melhor Amiga” é o elenco. A interpretação de Aiko Beemsterboer consegue imprimir um verniz de novidade a Anne Frank, enquanto a Hannah Goslar de Josephine Arendsen prima pela lascívia, a primeira faceta a se anular nessas figuras que pela glória ou pela desdita transcendem a própria vida. O roteiro de Batavier e Ruven, é natural, tem suas incongruências, precisamente por considerar ser necessário optar por um só lado das protagonistas por vez, dando vazão ora às travessuras quase sensuais de Frank e Goslar, ora convertendo-as em heroínas incapazes de quaisquer pensamentos ímpios.

Como não poderia deixar de ser em filmes dessa natureza, as cenas do confinamento das amigas, em unidades distintas, vêm à superfície no momento exato, impedindo que a trama esfrie ou perca sua razão de ser, qual seja, registrar o suplício das garotas. Em setembro de 1944, as tropas da Schutzstaffel, a polícia política do regime nazista, estouram o esconderijo de Anne Frank, e um mês depois ela é destacada para servir em Bergen-Belsen, com a irmã, Margot, de onde não sai mais. É o momento em que a fotografia cheia de contrapontos carnavalescos de balões coloridos contra um horizonte coruscante cede lugar a enquadramentos quase negros e Arendsen diz a que veio, afinal. As sequências em que Goslar é obrigada, como todas as demais cativas, a esvaziar baldes de fezes e disputar restos umas com as outras, se prestam a uma lembrança sempre necessária quanto a nunca mais se permitir que a civilização retroceda tanto.

Anne Frank é uma figura cara à história dos Países Baixos. Foi na Holanda que Otto conseguiu retomar a vida depois da perseguição implacável de Hitler. Todo o clã dos Frank se mudara para Amsterdã entre o final de 1933 e fevereiro de 1934 — Anne estava nessa última leva. Quando o nazismo subjugou também a Holanda, em 1942, Miep Gies e seu marido, Jan, ajudaram os Frank a se mudarem para um calabouço no prédio que sediava a empresa do chefe da família, onde Gies trabalhava. Os registros de Anne Frank foram resgatados por Miep Gies depois de sua morte, em 1945; posteriormente Gies foi uma das pessoas mais próximas a conseguir persuadi-lo a levar o diário a prelo, uma vez que a filha manifestara reiteradas vezes o desejo de denunciar os horrores por trás da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo os que diziam respeito ao povo judeu.


Filme: Anne Frank, Minha Melhor Amiga
Direção: Ben Sombogaart
Ano: 2021
Gênero: Drama/Biografia
Nota: 9/10