Filme premiado da Netflix explora os abismos interiores de um homem para ajudá-lo a resgatar sua história

Filme premiado da Netflix explora os abismos interiores de um homem para ajudá-lo a resgatar sua história

Memo Garrido se esconde de seu passado, mas se esconde também de si mesmo. O protagonista de “Ninguém Sabe que Estou Aqui” (2020), um homem recluso cuja única ligação para fora de si mesmo é o tio Braulio, sofre calado por causa de um trauma de adolescência, que continua a torturá-lo passados 30 anos. Em outras palavras, Memo inventa desculpas para ser infeliz.

“Ninguém Sabe que Estou Aqui” é o típico filme de ator, em que Jorge Garcia dá a vida a um personagem complexo da maneira mais digna possível. O evento que tortura Memo o faz desenvolver comportamentos delituosos, como invadir casas sem razão, o que se explicaria se ele se sentisse estimulado a falar. Mas Memo não fala; tudo o que Memo faz é guardar o que lhe ocorre para si mesmo, receoso de que a vida o magoe ainda mais. O pouco que se dá a conhecer sobre o personagem central vem à tona por Braulio. O tio de Memo, interpretado por Luis Gnecco, tenta ajudá-lo a sair de seu casulo num lugarejo perdido no coração do Chile, mas quase nunca consegue alguma resposta. Garcia transmite à perfeição essa atmosfera de encarceramento do personagem, quebrada apenas quando Memo deixa a clausura de seu quarto e se desloca até o curtume da família, onde prefere seguir trabalhando sem muito método a comparecer aos convescotes com os vizinhos para os quais Braulio o convida. Quando nem mais o trabalho parece o suficiente para isolá-lo, Memo volta para sua solidão absoluta e se veste com os figurinos que ele mesmo confecciona, um espetáculo grandioso que só existe na sua cabeça.

Aos poucos, vão se desanuviando alguns segredos sobre o que teria acontecido para que Memo se lançasse nesse abismo de tristeza. Dono de uma voz suave e potente, o protagonista de “Ninguém Sabe que Estou Aqui” foi uma grande promessa do showbizz quando garoto, e poderia ter tido uma carreira brilhante, não fosse ter caído nas mãos de um empresário desonesto e preconceituoso. Ok, os tempos eram outros, as pessoas eram muito mais limitadas, as visões de mundo muito menos politicamente corretas, mas o que fica claro no roteiro do diretor Gaspar Antillo, escrito em colaboração com Josefina Fernández, é que Memo só merece da vida as migalhas. Mesmo seu pai, Jacinto, vivido por Alejandro Goic, acredita que o filho não possa ser admirado como artista por estar acima do peso — e em adulto, esse é um problema deveras flagrante para ele — e embarca no delírio criminoso do manager: aceitar que o filho empreste a voz a um garoto bonito, Angelo Casas, que se passa pelo intérprete de “Nobody Knows I’m Here”, que logo se torna um hit de sucesso indomável.

Um dos argumentos cinicamente usados pelo empresário para persuadir Jacinto é o de que por melhor que Memo cante, a canção deve se apresentar por uma embalagem harmônica, até porque evoca pulsões muito íntimas — quando não sensuais, e mesmo sexuais. A ingenuidade de Jacinto, que acertadamente nunca vira o filho dessa forma, não lhe permite poder fugir da armadilha em que cai com gosto, quiçá imaginando que assim o filho teria uma oportunidade qualquer de demonstrar seu talento e encampá-lo, com todo o seu desprezo aos padrões, por mais que tardasse. Esse dia, por óbvio, torna-se mais e mais distante, Memo continua sendo um mero espectro de Angelo, até que não suporta mais e se deixa tomar por um impulso violento, que afeta a vida dos dois — muito mais a de Angelo que a dele — para sempre.

A figura de Angelo, interpretado por Gastón Pauls em adulto, parece decidida a se impor outra vez na vida de Memo. O acidente que acomete Braulio logo traz mais uma reviravolta e Marta, sobrinha de Sergio, um dos fornecedores de peles vivido por Nelson Brodt, passa a frequentar a estância. A personagem de Millaray Lobos começa a revirar a misantropia e as falsas certezas de Memo, que, a seu modo, dá evidências de que se deixa abalar pela moça. É Marta a responsável por fazer Memo voltar a cantar, ainda que por um momento breve, depois de uma conversa ainda mais breve sobre Angelo, que lança um livro de memórias. Por ter reagido com fúria desproporcional, Memo presenteia a amiga com a poesia de sua voz, e o que se desdobra daí é muito mais desditoso que libertador, ainda que Memo demonstre cada vez mais prazer em tomar chá com seus fantasmas.

O diretor Gaspar Antillo é habilidoso em lidar com conflitos que demandam sensibilidade por serem nem irremediáveis nem banais, orbitados por personagens ora dóceis, ora irascíveis — Memo é só o mais cartesiano deles. Discussões como o universo das personalidades, famosas por conduzirem uma carreira pautada pelo talento, em contraponto à onipresença das celebridades, um conceito de todo distorcido, que se significava fama baseada numa inclinação natural para determinada arte (ou, ao menos, vocação), passou a querer dizer ser conhecido por despertar algum interesse extra-artístico, vêm à baila no trabalho de Antillo, que se vale da jornada nebulosa de seu protagonista a fim de movimentar essa engrenagem. Por mais que tenha tentado, Memo não conseguira sufocar os anseios pela vida de que poderia estar desfrutando, uma vez que continuou fazendo suas roupas de show e criando seus espetáculos para si mesmo. No último segmento de “Ninguém Sabe que Estou Aqui”, numa das derradeiras sequências, Memo e Angelo se reencontram num talk show de gosto duvidoso, e o que se vê é o só o reavivamento desses rancores ancestrais, que certamente hão de afetá-lo ainda mais antes do que ele possa imaginar.

É necessário uma dose extra de empatia e boa vontade para encarar o drama de Memo sem outras influências que não remetam ao filme propriamente. A duração enxuta da história é um acerto, até porque não seria possível acompanhar o filme por muito mais que seu pouco mais de hora e meia, graças à fotografia curiosamente escura, do princípio ao fim, não se sabe de modo intencional ou não. O emprego das paisagens chilenas, plenas daquela aura encantatória, com bosques densos e lagos de águas vulcânicas, vêm muito a calhar num enredo que exalta a solidão no que ela tem de mais nocivo e de mais nobre. Talvez essa seja a grande lição de “Ninguém Sabe que Estou Aqui”: entender que nem sempre o mundo nos merece.


Filme: Ninguém Sabe que Estou Aqui
Direção: Gaspar Antillo
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 8/10