Além de roubar a esposa do melhor amigo, ainda faz campanha contra vacina

No seu fascinante livro de memórias, o britânico Eric Clapton — considerado um dos maiores guitarristas da história da música, desde o alienígena Jimmy Hendrix — conta em detalhes, dentre tantas coisas, como se livrou do vício das drogas e do álcool, e como venceu pelo cansaço a magnética e esfuziante modelo Pattie Boyd que, à época, era casada com o seu parceiro musical e, então, melhor amigo, George Harrison — o ex-beatle tímido e esotérico que fora “incompreendido e injustiçado” por Lennon & McCartney.

A autobiografia é sensacional. Aliás, emprestei o livro para um amigo e, claro, ele nunca mais voltou. O livro não voltou. O amigo ainda ronda pelas imediações. Coisas assim acontecem. Também já filei livro. Se isso for um pecado grave, irei me encontrar com o velho Olavo no inferno. Eric conta, em minúcias, como ferveu em cima da carismática esposa do amigo George Harrison durante meses, até que, finalmente, ela cedesse e se dobrasse aos seus galanteios. Água mole em pedra dura, fogo morro acima, água morro abaixo… Sabem como é. Não foi tarefa fácil resistir aos argumentos de um pop-star jovem, rico e bonito que tocava guitarra como se escovasse os dentes.

De melhores amigos, o inferno anda cheio. Sempre foi assim. Nos jardins da mansão de George, Eric chamou o parceiro para um tête-à-tête. Disse que precisava lhe “contar uma coisinha”: estava profundamente apaixonado por Pattie e o sentimento era recíproco. É verdade: sinceridade é uma atitude louvável para o ser humano. Porém, por mais que se goste de um amigo, acho que ninguém absorveria, sem estupefação e sem raiva, o fato de um parceiro de longa cair de quatro pela sua companheira.

Mesmo assim, com a capacidade de explosão emocional domada pelos ensinamentos esotéricos da cultura milenar indiana, da qual George Harrison era um seguidor declarado, manteve a elegância firme sobre os cascos. Nada de socá-lo no nariz ou de enxotá-lo para fora do belíssimo gramado impecavelmente podado pelos serviçais. Isso o livro não fala, mas, imagino que fumaram cigarros e ficaram em silêncio por um longo tempo, pensando no que dizer. De tanto aporrinhar a linda Pattie Boyd, acabaram se casando, mas, não foram felizes para sempre. Separaram-se após oito anos de união e não foi por causa de uma praga lançada pelo ex-beatle. Coisas assim não existem.  

Sou um fã de Eric Clapton, mas, confesso abestalhado que estou decepcionado. Suponho que Raul Seixas também ficaria. Acompanhei pela imprensa que o exímio guitarrista fez campanha contra a vacinação anti-Covid e contra os cuidados preconizados pelas autoridades sanitárias para conter o avanço da pandemia assim que ela pipocou. Pelo que foi noticiado, Eric tomou duas doses da vacina Astra Zenica, sentiu vários efeitos colaterais e, desde então, desandou a difamar e a combater a vacinação, além de acusar pessoas e entidades de lavagem cerebral e de uma suposta histeria coletiva. Cheguei a pensar que o velho Eric estivesse caducando ou que voltara a se drogar. Dentro de um contexto humanitário, o comportamento negacionista não é algo que se espera de um artista da sua envergadura e da sua importância.

Fiz uma breve pausa na produção deste texto para praticar exercícios olfativos. Lá se vão mais de dois anos desde que perdi o olfato. 95% da acuidade foi para o beleléu. Não sei bem como explicar. Já tinha percebido o problema antes mesmo da deflagração da pandemia de Covid-19 no Brasil. Então, não posso imaginar que tenha sido um dos primeiros brasileiros a me contaminar com o vírus.

Fato é que estou cheirando cinco frascos com fragrâncias variadas para tentar restabelecer o olfato. Percebo os aromas bem lá no fundo, de olhos fechados, a testa franzida e muita, muita concentração. Uma das metas é voltar a sentir o perfume da dama-da-noite que plantei no quintal de casa há alguns anos. O aroma desta planta é uma delícia. Sinto-me como se estivesse mesmo num cabaré, só que sem os bêbados e os micróbios.  

Indignado com a postura de Eric Clapton, um artista que tanto admiro, proveito a melancolia e ponho para tocar uma set-list com as suas melhores canções. Indubitavelmente, o sujeito é genial. Portanto, além do nariz e da massa cinzenta, terei que treinar o coração para não misturar as coisas, para separar o homem do artista, para não deixar de amar um dos maiores músicos da cultura pop em todos os tempos, um ícone de várias gerações que, de repente, como se estivesse contaminado pelo vírus da ignorância e da estupidez, passasse a se comportar como um legítimo idiota. É uma lástima. Nem Layla, com toda a sua beleza, com toda a sua doçura, aprovaria uma coisa como essa.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.