Tão filosófico quanto divertido, filme escondido na Netflix é um diamante para a alma

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O cinema é pródigo em alegorias sobre seres extraterrestres que, de uma forma ou de outra, despencam sobre a Terra e passam a fazer parte do cotidiano de um lugar em que não são exatamente queridos, mas vão conseguindo, de pouco em pouco, angariar a simpatia dos nativos. O caso mais célebre é, decerto, “E.T. O Extraterrestre” (1982), de Steven Spielberg, mas nem só de Hollywood vivem essas criaturas.

No bollywoodiano “PK” (2014), Rajkumar Hirani faz um retrato bastante plural do que poderia ser um espécime vindo de uma outra civilização qualquer, malgrado resvale nos milhões de clichês de que todas as produções do gênero já lançaram mão em alguma quadra da história do cinema. Aqui, Aamir Khan, visivelmente limitado, mas carismático até a última fibra de seus tantos músculos, chega à face do Planeta Azul nu em pelo, no meio do deserto do Rajastão, na fronteira indiana com o Paquistão — uma ideia fixa dos diretores hindus, ao que parece —, munido apenas de uma espécie de radar, que identifica a área em que se encontra e não o deixa se perder de sua nave. Na sequência, surge diante dele um velho, aparentemente inofensivo, e os dois trocam impressões sem que se diga uma palavra de parte a parte. O protagonista o observa, intrigado com seu modo de se vestir, com sua maneira de usar o vasto bigode grisalho, intuindo que aqui embaixo deverá apresentar-se da mesma forma. Antes que consiga formular alguma outra ideia, o andarilho lhe arranca o radar do pescoço e foge, correndo a tal velocidade que é capaz de alcançar o trem que passa (valhamo-nos da licença poética, por favor). O alienígena o persegue, quase o captura, mas acaba ficando sem sua ferramenta de trabalho.

O que se segue tem um forte componente de comédia pastelão, numa narrativa que Khan conduz muito bem, a despeito de seus talentos, digamos, específicos. Como encarar um homem completamente despido que transita pela Nova Délhi meio aparvalhado, convicto de que está no lugar errado, do jeito mais impróprio, mas que deve se resignar e adequar-se, a fim de evitar maiores contratempos? O estranhamento é mútuo, tanto de PK, modo pelo qual passa a ser chamado, como dos moradores da megalópole. Por infringir uma convenção moral, PK — uma gíria para “bêbado” — vai parar na cadeia, destino de que o velho que o assaltara consegue fugir, momento em que Hirani e o corroteirista Abhijat Joshi começam a pincelar sua trama com as tintas de crítica social.

Vendo cada vez mais distante a possibilidade de regressar a seu planeta, PK dá início a uma saga para o mais recôndito das pessoas que cruzam seu caminho. Hirani disserta acerca das religiões e seu poder tanto de serenar o espírito do homem diante de todos os xxxx na vida terrena, como de bestializar e mesmo corromper mentes mais ingênuas e menos desenvolvidas. PK é mostrado em meio a fiéis das diversas denominações teológicas presentes na Índia — do jainismo ao sikhismo, passando pelo hinduísmo e, clero, pelo cristianismo e o islamismo. Apesar de ter começado na Índia, no século 7 a.C., o budismo é praticado somente em pontos isolados do país e ficou de fora do registro de “PK”. Mesmo assim uma decisão algo despropositada do diretor.

A graça de “PK” vem em pílulas. O primeiro grande choque do personagem de Aamir Khan é o mais prosaico de todos, ter de se cobrir para ser aceito entre os demais indivíduos. Como é empurrado para uma essência de marginalidade que o absorve com uma força indomável, julga natural furtar as roupas dos casais extraconjugais que consumam sua lascívia em terrenos baldios, outro apontamento satírico do filme. Zombando até de medalhões da história da Índia, como o pacifista Mahatma Gandhi (1869-1948), Hirani se destaca como um dos maiores provocadores do país hoje, oxigenação necessária numa sociedade ainda arcaicamente patriarcal e paternalista, fundada nas hediondas castas, que definem para o bem ou para o mal o papel de cada cidadão na vida da coletividade, inclusive daqueles infelizes que sequer são vistos como cidadãos.

“PK” dispõe de sua porção romântica, dispensável, com a entrada de Jagat Janani, a repórter que se encarniça no rastro do personagem central no intuito de levar ao noticiário sua história. Janani, papel de Anushka Sharma, uma das maiores celebridades da Índia, não acrescenta nada ao caudaloso enredo, ainda que o romance que deseja emplacar com Sarfraz Yousuf, vivido por Sushant Singh Rajput — ele, muçulmano; ela, hinduísta —, colabore para sacudir um pouco a pasmaceira depois de uma batelada de acontecimentos. O problema é que esse é um dos tantos arcos dramáticos que não se fecham no roteiro, dada a escolha de Hirani de privilegiar o tema da discrepância de PK quanto àquele meio, exagerado. O romance, por óbvio, é desestimulado e condenado pela família de Janani, mas as razões que despertam tamanha ojeriza, religiosas, nunca ficam claras o suficiente.

“PK” se aprofunda um pouco mais num dos tantos dramas de nações tão grandes quanto a Índia. Ao falar de preconceito, respeito para com o outro, tolerância para com o diferente, o peso muitas vezes insustentável dos costumes, Rajkumar Hirani se prova um cineasta digno de respeito, por mais erros conceituais que o filme possa vir a ter. Este é um trabalho sobretudo corajoso, papel de que a arte também precisa investir-se.


Filme: PK
Direção: Rajkumar Hirani
Ano: 2014
Gênero: Comédia
Nota: 8/10