Corroborando a máxima popular, em terra de cego quem tem olho é mesmo rei. E visão é o que não falta a Chung Mong-hong, cada vez mais arguto em desvelar a alma humana. Com “The Falls”, seu trabalho mais recente — cujo título faz referência a um evento no desfecho da história —, Mong-hong está novamente no radar do Oscar 2022, agora como representante de Taiwan na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Lançado em 6 de setembro de 2021, momento em que a pandemia continuava a deixar um rastro de pânico, transmutada na nova variante ômicron — menos letal, porém mais transmissível —, “The Falls” honra a tradição taiwanesa, iniciada em 1980, de conseguir emplacar um filme na seleção da Academia. Em 2000, o país levou a melhor com “O Tigre e o Dragão”, dirigido por Ang Lee e, ao que se depreende do capricho com que Mong-hong conduz seu novo filme, é bastante provável que seu desempenho também seja recompensado com um homenzinho dourado.
A pandemia é só um trampolim em que o diretor sobe para se projetar e finalmente se lançar sobre o que de fato quer discutir em “The Falls”. No Oriente — na China, sobretudo —, um pai pode ser tão distante do filho quanto o macaco do cão, mas os laços entre a mãe e sua prole às vezes pode apertar tanto que chega a sufocar. Chung Mong-hong consegue como poucos absorver o zeitgeist, o espírito que representa o tempo em que vive, a fim de exercer seu ofício da melhor forma, dando um passo depois do outro, concentrando-se na produção a que se dedica, sem muita ideia sobre como vai se sair, principalmente diante da crítica. Quanto ao público, esse fica cada vez mais preso pelo teor encantatório de tudo o que diretor leva à tela, e o espectador, sim, se pergunta se algum dia o taiwanês há de fazer alguma coisa que não seja genial, ansiando, por óbvio, que a resposta seja sempre negativa.
Arrastando uma multidão de repórteres e fotógrafos quando de sua estreia na Horizons, uma das seções mais badaladas do Festival de Cinema de Veneza, na Itália — performance que conseguiu reproduzir no Toronto International Film Festival, no Canadá —, “The Falls” poderia ser tomado como uma prorrogação da goleada de “A Sun” (2019), igualmente reverenciado na Ásia, mas quase ignorado no eixo Los Angeles-Nova York (América do Sul, então, nem se fala). Contudo, essa é uma análise apressada e preguiçosa do longa, que, como o anterior, igualmente excede as duas horas de duração. Se há algum vínculo genuinamente verdadeiro entre os dois é que tanto em “A Sun” como em “The Falls” o fino senso de observação e sua capacidade ímpar de verter situações corriqueiras em momentos lapidares do cinema, registrados com muito mais humor em “A Sun” do que em “The Falls”, é verdade. Sendo bastante franco, nem se nota essa casmurrice do diretor em seu novo trabalho, mérito de um elenco pequeno, mas bravo.
Estrelado por Alyssa Chia e Gingle Wang, mãe e filha que começam se detestando — a filha detestando a mãe devotadamente, enquanto esta só se defende, para ser preciso —, o filme lança mão da necessidade de se respeitar o isolamento social compulsório e, em casos extremos, quarentenas indesejadas, para se espraiar sobre os desencontros da relação das duas. Chia, a mãe meio desorientada que educa a filha, Wang Jing, tentando conciliar a carreira, que declina subitamente, e um divórcio que não consegue superar, mesmo passados três anos, vai se entregando ao desespero, primeiro por não ser mesmo capaz de entender a personagem de Wang. Conforme a história toma corpo e a executiva perde o emprego numa multinacional por razões que degringolam uma pletora de outros infortúnios, a personagem se dá conta de que pode chegar ao coração dessa estranha que mora consigo, que por seu turno também nota a carência abissal da mulher que renunciara a prazeres para se preocupar só com a filha. O convívio antes forçado, e sofrido, torna-se uma terapia, em que Wang Jing passa a devolver um pouco de todo o empenho que a mãe lhe destinara, mormente depois que um acidente doméstico acaba por lançá-la numa nova condição, que enterra de vez seu sonho de recobrar o sucesso profissional.
Em “The Falls”, Chung Mong-hong joga nas onze, atuando como diretor de fotografia do filme, mas contando com Chang Yao-Sheng na coautoria do roteiro, um contraponto interessante que certamente dá ao longa a delicadeza de que se reveste até o desfecho, feliz, mas melancólico. O filme é, sim, uma prova do supino talento do taiwanês, mas como se disse, sempre se aprecia Mong-hong também à luz do que ele está por fazer em breve, um drama ambientado em Taiwan, durante os anos 1950, quando da ascensão do Kuomintang, o Partido Nacionalista Chinês, prenúncio do que seria a barbárie da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung (1893-1976), entre 1966 e 1976. E mesmo assim essa flor conseguiu desabrochar.
Filme: The Falls
Direção: Chung Mong-hong
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 10