Fundindo linguagens e apresentando uma outra visão sobre problemas já conhecidos da humanidade ao longo de sua história, “Distrito 9” (2009) mostra alienígenas repugnantes que morrem de medo dos terráqueos — com toda a razão —, magros, doentes e perdidos numa espaçonave sob o horizonte de Joanesburgo, capital da África do Sul. O estereótipo da criatura extraterrestre ávida por dominar este outro mundo, escravizando os mais fortes e simplesmente aniquilando os mais fracos, cai por terra. Trabalhando com mais rigor o argumento já desenvolvido de maneira sucinta em “Alive in Joburg” (2005), o curta em que introduz o tema de “Distrito 9”, o diretor sul-africano Neill Blomkamp trata esses seres asquerosos (chamados de camarões, mas parecidos mesmo é com grilos gigantes) como um exército de esfarrapados, famélicos, dependentes da, quem diria, humana piedade para preservarem sua existência indesejada. Não conseguem voltar a seu planeta de origem — uma questão que não resta exatamente clara no enredo —, ao mesmo tempo em que não podem permanecer no espaço aéreo da metrópole para sempre. Ou seja, será preciso encontrar um lugar para acomodá-los, ainda que sejam intrusos nada confiáveis.
A fim de tornar-se senhor do mundo e de todas as criaturas que o habitam, o homem teve de se impor. Começou por subjugar os bichos que considerou dóceis, e os fez trabalharem para si. Em seguida, para vencer as tantas feras que ameaçavam sua integridade física, muito mais bravias e corpulentas do que ele múltiplas vezes, criou instrumentos como tacões, lanças e fundas e, assim, estendeu seus torrões. A próxima etapa foi dominar o fogo, desenvolver a pólvora e a sorte do gênero humano estava dada: a guerra. Em “Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2011, o historiador israelense Yuval Noah Harari defende que o homo sapiens só subiu tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais prosaicos, como os melhores bosques da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem corrermos o risco de morrer intoxicados, por exemplo. E esse conhecimento sobre tudo o que existe de relevante, impossível aos outros animais, não seria nada se não viesse acompanhado do aprimoramento da força bruta. Os ETs sentem logo essa disposição do homem de mandar, dominar, subjugar outras espécies. A verdadeira guerra que é manter os camarões sob controle, num acampamento situado numa zona afastada de Joanesburgo, o Distrito 9 do título, é liderada por um pacato burocrata que jamais soubera manter a ordem sobre coisa alguma, nem mesmo seu casamento. Wikus van der Merwe é o bravo general sem medalhas desses combates insanos, em que o invasor decerto está muito mais assustado e acuado que o anfitrião do território que se veem obrigados a ocupar. Sharlto Copley demonstra bom domínio do personagem, deixando sempre evidente a hesitação que acaba por condenar Van der Merwe. Tendo de lidar com uma crise de consciência renitente, Van der Merwe se vale de tanques de guerra e lança-chamas para repeli-los, exterminando os camarões com crueldade e sem convicção. Abordagem sem dúvida original e reveladora de Blomkamp, como se vai ver conforme a narrativa se adianta.
O mistério sobre os alienígenas se alonga no roteiro, trabalho conjunto entre o diretor e sua mulher, Terri Tatchell, indicada ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por “Distrito 9”, e torna-se parte fundamental da história. Ninguém se arvora em indagar de onde vêm, por que acabaram tomando a rota errada, o que pretendiam: agora, tudo o que importa mesmo é que são um amontoado de organismos multicelulares que enfraquecem a já combalida paz social da África do Sul, ainda por se recuperar da barbárie do Apartheid, sistema que segregou institucionalmente brancos e negros, garantindo àqueles privilégios com que estes não poderiam sequer sonhar, em vigor entre 1948 e 1994. Num mundo em que a imigração por motivos sociopolíticos e perseguição religiosa tornou-se genuína chaga em sociedades as mais diversas ao redor do globo, os camarões são vizinhos inconvenientes, malgrado mantidos sob distância. São repulsivos na aparência e no comportamento, e despertam tão pouca empatia que podem muito bem ser caçados sem que as autoridades importem quem quer que seja.
A alegoria defendida por Blomkamp em “Distrito 9”, apadrinhado por ninguém menos que Peter Jackson, dosa o andamento essencialmente ficcional do filme à natureza de documentário, em que são colhidos depoimentos de autoridades e cientistas sobre os supostos riscos da presença desses indivíduos entre os seres humanos. Só quando Van der Merwe é infectado por um vírus trazido pelos camarões é que consegue perceber que entre os alienígenas há quem se distinga da massa justamente por se comportar mais de acordo com o que o habitante da Terra tem por normal. Christopher Johnson, como é chamado, da mesma forma que Van der Merwe, se converte em mentor dos ETs, precisando da colaboração do terráqueo a fim de levar seu povo para seu planeta outra vez.
As referências sutis — e nem tanto — de “Distrito 9” sobre a luta por igualdade de parte da sociedade, convenientemente esquecida, evoca a problemas como o que fazer com os refugiados em tempos de incerteza absoluta sobre o futuro, esse déspota dos déspotas. Uma maneira inventiva como raras vezes se viu na história do cinema, Neill Blomkamp escolhe balançar entre a ficção científica, o drama e, o melhor de tudo, o ensaio a fim de conjecturar quais serão mesmo os grandes desafios deste século 21, pleno de enroscos mal resolvidos dos séculos que o antecederam. Tudo de maneira muito séria.
Filme: Distrito 9
Direção: Neill Blomkamp
Ano: 2009
Gênero: Ficção científica/Drama
Nota: 9/10