O drama francês da Netflix que você certamente não viu Christophe Brachet / Temperclayfilm

O drama francês da Netflix que você certamente não viu

Nicolas Bedos apostou alto em “Monsieur & Madame Adelman”. Ao lado da mulher, Doria Tillier, o comediante disseca quatro décadas na vida de Victor e Sarah, casal de intelectuais franceses cheios das tantas idiossincrasias de pessoas como eles. Sem nenhum temor de soar pedante, o roteiro de Bedos e Tillier, cheio de referências a Woody Allen, Ingmar Bergman (1918-2007), Paul Thomas Anderson e Epicuro (341 a.C.- 270 a.C), fala de amor, casamento, amor e falta de amor no casamento, ciúme e jogos sexuais, propondo um exercício de cumplicidade entre o filme e o espectador.

“Monsieur & Madame Adelman” começa em 2017, quando o filme é lançado, e retrocede até o início da década de 1970, momento em que Victor, vivido pelo próprio Bedos, e Sarah, de Tillier, se conhecem, não numa livraria ou num concerto de Pierre Boulez (1925-2016), como Sarah faz questão de deixar claro, mas numa das boates mais decadentes de Paris. A estreia de Bedos na direção, dono de uma carreira sólida diante das câmeras, decerto colaborou para o sucesso do longa, mas o tom excessivamente farsesco da trama deixa um gosto meio rançoso num trabalho que prometia se destacar pela ousadia.

É louvável o vigor de Bedos e Tillier quanto a revestir “Monsieur & Madame Adelman” da atmosfera inteligente e refinada que os protagonistas pedem, mas a opção do diretor por exaltar clichês — de propósito, à guisa de sátira — não funciona, isso para não mencionar a reviravolta que marca o desfecho, artificialmente fácil. A brincadeira autorreferente dos atores, repleta de piadas internas que o público, claro, não entende e, mais claro ainda, de que não acha graça deixam o filme morno, distante, quase arrastado, efeitos que talvez se pudessem minimizar se se abreviassem as duas horas de duração.

O Victor de Bedos começa a história sem o Adelman do título, sobrenome de Sarah. Como toda comédia francesa protagonizada por um casal neurótico que se preze, logo aparece um psiquiatra, que ouve pacientemente as queixas do personagem central masculino, ora sobre partes diminutas de sua anatomia íntima, ora sobre seu insucesso na carreira de escritor, que está mais para uma mera aspiração, até que Sarah surge em sua vida como um raio de sol, inesperado e revigorante, na escuridão úmida de um pântano. Doutoranda em literatura e escritora de prosa incomum, o encontro dos dois, no inferninho que a personagem de Tillier mencionara no começo de “Monsieur & Madame Adelman”, é uma das melhores coisas do filme. Essa, sim, é uma passagem cujo realismo dos diálogos estarrece, dada a honestidade e a crueza da situação. Sarah, paralisada pela beleza e pelo charme que enxerga no futuro marido, renuncia a qualquer migalha de amor-próprio para se aproximar de Victor, bêbado, inconveniente e disperso.

Algumas sequências avante, Victor e Sarah já são marido e mulher, depois do candidato a romancista tirar de letra o jantar com a família da então namorada, outro momento de destaque do enredo. As discussões sobre o que é ou não ser judeu — condição que a personagem de Tillier não partilha com Victor — vêm embrulhadas em tiradas do pai da protagonista, interpretado por Ronald Guttman, que enaltece gênios da raça como o escritor americano Philip Roth (1933-2018), autor de “O Complexo de Portnoy” (1969), espécie de resumo da vida de Victor, malgrado ele seja um homem gói, sem ascendência judaica. Depois que voltam do jantar, durante o sono, Victor tem uma revelação: ainda que não tenha sangue judeu, sente-se judeu, e assim passa a se definir. Sarah embarca na fantasia do parceiro e sugere que assuma seu sobrenome, Adelman, o que daria uma sacudida nas pretensões artísticas dele, emperradas desde sempre. A partir desse gesto, as vidas dos dois mudam irremediavelmente.

A câmera passeia pelo casamento de Victor e Sarah, inserindo o público nas muitas transformações pelas quais eles passam. Valendo-se do argumento da mulher de escritor muito mais sensível, muito mais hábil com as palavras, muito mais talentosa, enfim, Nicolas Bedos emprega a mesma ideia do sueco Björn Runge em “A Esposa”, cuja estreia também se deu em 2017, mas que só ganhou o circuito comercial dois anos mais tarde. Já tendo abdicado da própria identidade quando sugerira ao marido adotar seu nome de família, Sarah repete o gesto em várias outras ocasiões, desenvolvendo boa parte das obras que garantem a Victor prestígio e fortuna. A narrativa se estende ao longo dos anos registrando justamente essa passividade de Sarah, que sequer conclui o doutorado a fim de se dedicar integralmente ao marido e aos dois filhos que irão ter, um espelho dos problemas conjugais. A personagem de Tillier, num desempenho que cresce exponencialmente, se contenta em viver à sombra do marido, à primeira vista tendo por consolo a vida de fausto de que gozam, logo esvaziada do pouco sentido de que poderia estar envernizada. O casal e os filhos vão morar num palacete, servidos por um batalhão de empregados negros, só para que fique claro que escalaram a pirâmide social. Custa um bom pedaço de “Monsieur & Madame Adelman” até que Sarah recobre sua personalidade, vítima dos acessos de ciúme de Victor, convicto de que a retomada para ele súbita da autoestima da mulher tem a ver com um suposto adultério, que o escritor tenta combater, numa medida extrema, contratando Pablo, o garoto de programa possivelmente latino de Joakim Latzko, um respiro cômico eficaz, ainda que meio previsível.

As idas e vindas de Victor e Sarah são críveis, como sabe qualquer um que já tenha se apaixonado verdadeiramente. Para ela, não importa que ele perdera cabelo, demonstre certo pendor quanto a levar para a cama as alunas da cátedra em que leciona, e até se apaixone por uma, Mélanie, de Lola Bessis, não por sua juventude ou beleza, mas por admirá-lo. Como diz a personagem de Tillier a esse propósito, o conhecimento e a fama são predicados desabridamente sensuais, mormente num homem, a ponto de suprirem perfeitamente a debacle física. Como Victor fizera com Pablo, Sarah dá um chega pra lá definitivo em Mélanie, e igualmente dispensa o segundo companheiro, Marc, interpretado por Jean-Pierre Lorit, um homem maduro e sensato como ela.

O encerramento de “Monsieur & Madame Adelman”, depois de tantas demonstrações de amor de Sarah, é um despropósito, que nem mesmo pode se arvorar no nonsense. A personagem ter levado uma vida inteira para se vingar, e tê-lo feito precisamente no momento em que conseguira, enfim, reconciliar-se com o marido não é farsa nem provocação, mas só uma piada preguiçosa sobre relacionamentos que se estendem além do razoável e caem de podres, que soaria justa apenas se Sarah tivesse deixado claro em algum momento da história seu desprezo por Victor — e o que se viu foi sempre o contrário. Da forma como Nicolas Bedos conclui esse caso, a sensação que fica é que o cinema francês é sempre genial e quem não gosta é um brucutu de quatro costados. Essa carapuça não me serve e que o público se sinta desobrigado de qualquer autoflagelação pela suposta ignorância.


Filme: Monsieur & Madame Adelman
Direção: Nicolas Bedos
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Drama
Nota: 7/10