Obra-prima do cinema de ação, com música no cérebro e borracha queimada na alma, está na Netflix

Obra-prima do cinema de ação, com música no cérebro e borracha queimada na alma, está na Netflix

Um protagonista carismático num filme em que motores possantes são parte destacada do enredo é mais que bem-vindo, é essencial. Um garoto desajustado, com uma ligeira deficiência auditiva, poderia valer-se desse argumento para delinquir. Baby, o personagem central de “Em Ritmo de Fuga”, é um delinquente, mas encara sua condição como um dado da natureza, um infortúnio, sem culpar ninguém. É um delinquente que, por acaso, escuta pouco. Mas escuta tudo.

Baby até pode não admitir, como uma forma que o cérebro encontra para bloquear traumas tão violentos como os que o lançaram nesse novo mundo de silêncio impositivo; no entanto, o diretor Edgar Wright imprime em seu anti-herói o ar de bom ladrão que derrete até o coração mais inflexível. Precisou para tanto, por óbvio, da doçura de um Ansel Elgort muito consciente de sua simpatia, mas também senhor de seu talento para tornar verossímil que aquela carinha imberbe, angelical, escondia uma alma tão irremediavelmente perturbada. E ele consegue; a parceria entre protagonista e diretor salta aos olhos sempre que Baby vem à cena, parceria à que se junta Lily James a certa altura da história, e a partir de então, é impossível pensar em qualquer outra coisa que não no sucesso ou fracasso dessa relação.

Talvez também em decorrência de seu trauma, Baby desenvolvera uma incrível habilidade para dirigir em circunstâncias adversas — e toda circunstância é adversa no ofício que exerce, piloto de fuga da gangue de assaltantes gerida por Doc, vivido por Kevin Spacey, que planeja os ataques, expõe o plano aos criminosos e os despacha no carro guiado por este garoto prodígio do submundo, ainda mais genial ao conseguir absorver tudo o que Doc lhe diz sem tirar os fones do ouvido. Na verdade, esse é um artifício que o personagem de Elgort usa para abafar o zumbido que reverbera dos tímpanos para a caixa craniana, uma sequela do acidente que mudara sua vida. O mundo para ele gira segundo os ponteiros do velocímetro, contudo, a música que toca num de seus muitos iPods é o que define o jeito como conduzirá seu dia e seu trabalho. Assim Baby se sente um pouco menos refém de seu destino e de sua desgraça, e “Em Ritmo de Fuga” adquire um gosto todo particular, como um musical em que a canção ganha vida.

Logo no começo do filme, o bando de Doc parte para a ação num banco enquanto Baby permanece no carro, ouvindo “Bellbottoms” do Jon Spencer Blues Explosion no volume máximo, acompanhando a letra e sem fones. Buddy, interpretado por Jon Hamm; Darling, vivida por Eiza Gonzalez; e Griff, personagem de Jon Bernthal, voltam carregados de malas de dinheiro e doravante o frenesi de “Em Ritmo de Fuga” se apresenta sem rapapés. As cenas de perseguição dirigidas por Edgar Wright são um capítulo à parte no longa e constituem um dos melhores registros dessa natureza do cinema recente. Não esquecendo o componente musical de seu trabalho, fazendo questão de lembrar-se dele, Wright pensa o roteiro e a trilha sonora como uma única estrutura,  dando a seu personagem mais importante a incumbência de fazer o espectador crer que sua vida é mesmo assim, e mais, que ela sempre o fora. Qualquer ruído, o de toques ao telefone quando se digita uma mensagem ou o de maços de cédulas sendo dispostos sobre uma mesa, se integram à música, que por seu turno não se dissocia da narrativa.

Como os finados videoclipes, “Em Ritmo de Fuga” pode dar a entender que o que se ouve tem mais força que a trama em si, porém a decisão de Wright de centrar fogo no viés rítmico de seu filme em nada lhe diminui a consistência. A ação, trunfo do enredo, resta preservado até o desfecho, em que uma reviravolta totalmente inusitada fecha o arco de Baby e Debora. Enquanto isso não acontece, Baby continua sendo obrigado a servir de motorista nas empreitadas cada vez mais atrevidas de Doc, por causa de uma pendência que tem para com o mafioso. O tipo encarnado por Lily James lhe devolve a vida normal de um rapaz que anseia por ter um emprego comum, ainda que banal e injustamente remunerado, desde que disponha da garota que ama ao seu lado. Como sói acontecer em filmes assim, uma vez que se permite desviar, não se volta à vida de antes. Entretanto, Debora, a garçonete que Baby conhece depois de seu expediente nada convencional, lhe faz acreditar que tem uma chance de retomar o curso adequado de sua jornada. Mesmo que isso seja mais torcida que uma possibilidade real.

É inevitável comparar “Em Ritmo de Fuga” a outras tantas produções do gênero. “Drive” (2011), de Nicolas Winding Refn decerto fora uma inspiração para Wright, da maneira como personagem é destrinchado ao modo como encaminha seus relacionamentos íntimos, passando, claro, pelo que mais aproxima Baby e o condutor sem nome que protagoniza o filme de Refn, vivido com a intensidade habitual de todo trabalho de Ryan Gosling. Ambos são homens jovens que enfrentaram momentos de muita turbulência e, aos trancos e barrancos, deram um jeito de virar o jogo, valendo-se do dom de poder dirigir em situações de estresse radical, permeadas pelo crime. Quanto ao filme de 2017, Wright esquematiza a história da perspectiva da música suavizando a angústia existencial e o, quem sabe, remorso de Baby em ter tido de mergulhar fundo na marginalidade evitando justamente tornar-se um marginal. Aludindo a Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard e todos os filósofos pessimistas sem os citar, por evidente, Wright ancora seu filme numa atmosfera ligeiramente noir, cujo pano de fundo é a máxima surrada que enuncia que não se evita o mal praticando outros males e o destino é uma serpente traiçoeira pronta a dar o bote na primeira curva do caminho, portanto toda atenção é pouco. Em algum lugar de sua alma fragmentada Baby escuta a lição, e se agonia ainda mais por não poder aplicá-la.

“Em Ritmo de Fuga” é o típico filme que o match entre roteiro, direção e elenco redunda num casamento feliz, ainda que o excesso de atores acabe por fomentar desperdícios lamentáveis, como o de Jamie Foxx e Jon Hamm. Esse casamento é o que continua a nos motivar a ir ao cinema, ou, por motivos de força maior, acompanhar de casa mesmo, mas diligentemente, o que pretendem um diretor e seus atores numa história tão distante da vida comezinha que Deus nos dá. Saber que esse ciclo nunca se encerra é o que nos faz, como Baby, resistir.


Filme: Em Ritmo de Fuga
Direção: Edgar Wright
Ano: 2017
Gênero: Ação/Romance
Nota: 9/10