Neymar saiu, afinal, da adolescência, como dizia dele quase toda a imprensa europeia até quatro anos atrás, e tornou-se um homem? A humildade que se vê em suas entrevistas é sincera ou só um golpe de marketing infinito, orquestrado pelo pai? A vida de glamour, o excesso de dinheiro, o prestígio junto à publicidade ajudam ou atrapalham? Eis algumas das questões que “Neymar: O Caos Perfeito” tenta responder ou, ao menos, desmistificar. Na série documental em três episódios, estreia da Netflix em 25 de janeiro de 2022, o diretor David Charles Rodrigues expõe a intimidade de um dos mais importantes — e mais bem-sucedidos — atletas brasileiros de todos os tempos, além, claro, de repisar episódios memoráveis (e outros nem tanto) de sua carreira. Ao longo de quase três horas de projeção, uma inferência é líquida e certa: ele não tem a menor vontade de mudar seu estilo de vida.
“As pessoas se incomodam por eu ser baladeiro, mas não veem meu desempenho em campo. Se consigo aproveitar a vida e jogar bem, sorte a minha”, é o que Neymar costuma responder a quem o indaga sobre seu jeito bon vivant de ser. A resposta, claramente orientada por Neymar da Silva Santos, o Neymar Pai, é cínica, mas parcialmente verdadeira. Aos 56 anos, ex-jogador limitado de times de várzea da Grande São Paulo nos anos 1980, Neymar Pai é o responsável por gerir a carreira e a vida pessoal do filho, e admita-se ou não, tem feito um excelente trabalho. Jogadores muito mais talentosos já teriam sucumbido à maré de escândalos que volta e meia arrebenta na vida de Neymar, e isso, por óbvio, tem um custo.
Hábil em livrar Neymar das muitas enrascadas em que o esportistas tem se metido em mais de uma década como jogador profissional, em 2009, no Santos — a mais grave envolvendo um suposto estupro, já devidamente esclarecido (a garota forjou a agressão, mas o desmentido nunca é tão impactante quanto o boato em si), além das polêmicas com outros atletas e atores, sobre os mais diversos assuntos —, o empresário encarna à perfeição o papel de eminência parda do atacante do Paris Saint Germain. É ele quem decide quem se aproxima de Neymar e quem deve ser observado com binóculo (incluindo as companhias femininas), bem como que roupas vestir e, por evidente, onde aplicar a montanha de dinheiro que cai na conta todos os meses, quer jogue ou não. Esse é um ponto fascinante no conto de fadas que tem sido a vida de Neymar. Com um salário contratual de mais de meio milhão de euros (mais de três milhões de reais), fora prêmios, para ser “cortês e pontual” — jogar bem é outra história —, o patrimônio do jogador se aproxima da casa da centena de milhão de euros (são 95 milhões, ou cerca de seiscentos milhões de reais, e contando), sendo que todas as transações feitas em nome dele somam 310 milhões de euros, quase dois bilhões de reais. Nada mal para o Magrelo da Vila Belmiro, como o chama Lima, ex-meio-campista do Peixe entre 1961 e 1971.
Propositalmente ou não, Neymar Sênior rivaliza com Neymar Júnior os minutos em tela durante a série. Todo de preto, barriga saliente bem marcada, é ele quem administra com mão de ferro a NR Sports, que cuida exclusivamente de Neymar, e comanda um batalhão de 215 profissionais que atuam em iniciativas voltadas à inclusão social com ênfase no esporte, todas, claro, divulgadas como projetos de Neymar. O documentário de Rodrigues pinta Neymar Pai como um homem um tanto paranoico, que mede cada passo minuciosamente. Segundo seus cálculos, Neymar mais “sete ou oito anos” em campo, isto é, poderia concluir o contrato com o PSG em 2025 e renová-lo por mais cinco — ou, como sói acontecer, pendurar as chuteiras num clube brasileiro qualquer, todos sempre muito honrados em receber jogadores que fizeram fortuna na Europa, mesmo sabendo que já não apresentam desempenho que se compare aos áureos tempos.
Oscilando entre o tom laudatório da narrativa e o rigor jornalístico, talvez a maior qualidade de “Neymar: O Caos Perfeito” seja renunciar, ainda que momentaneamente, à aura de celebridade de seu biografado e mostrar o homem por trás da lenda. Amigos anônimos como Gil Cebola e Jota Amâncio — que passam ao largo dos holofotes, mas desfrutam da boa vida que a amizade de Neymar lhes proporciona — ganham vez no relato de Rodrigues, ladeando o atleta na cama e chamando a atenção para um ponto melancólico na vida desses sortudos que se tornam multimilionários em tempo recorde. À exceção de Neymar Pai e dos amigos que fez depois de famoso — como Bruno Mossa de Rezende, o Bruninho, levantador da Seleção Brasileira Masculina de Vôlei, e o surfista Gabriel Medina —, todos os outros adultos que orbitam a vida do atleta são meros parasitas de seu dinheiro e seu brilho. As figuras de Nadine, mãe de Neymar, e Rafaella, a irmã mais nova e seu pastiche, dariam uma série à parte, à moda das Kardashians ou quaisquer outras socialites ocas e inverossímeis. É constrangedor ver ali duas mulheres feitas cujo único propósito na vida seja comparecer a festas badaladas, namorar garotões (filha e mãe) e fazer plásticas, uma depois da outra. Esse componente de farsa sem dúvida tempera “Neymar: O Caos Perfeito”, que nessa passagem lembra muito “Avenida Brasil”, novela exibida pela Rede Globo de Televisão entre março e outubro de 2012, sobretudo quando Nadine, sempre patética, conduz uma roda de oração cheia de badulaques, a testa interminável de Botox e o cabelo alongado. Que saudade da Carminha!
Repisando a polêmica com René Simões, técnico do Santos em 2010, e exibindo depoimentos de Pelé, David Beckham, Daniel Alves, Thiago Silva, Lionel Messi e Kylian Mbappé — estes, colegas de Neymar no Paris Saint Germain —, “Neymar: O Caos Perfeito” termina na hora exata, uma vez que, em estando Neymar Pai certo, ainda há muita lenha a queimar. O teor de entretenimento é o que realmente predomina no trabalho de David Charles Rodrigues, mas a porção factual da série tem peso. Um reflexo quase cartesiano da trajetória de Neymar até aqui.
Minissérie: Neymar: O Caos Perfeito
Direção: David Charles Rodrigues
Ano: 2022
Gênero: Documentário/Esporte
Nota: 9/10