O Terceiro Homem (1949) (em cartaz na Netmovies) foi feito para o cinema. A adaptação da novela homônima do escritor britânico Graham Greene (1904-1991), publicada no mesmo ano, encaixa-se à perfeição no que se espera de um filme de suspense, começando pela trilha. Anton Karas (1906-1985) fora descoberto pelo diretor Carol Reed (1906-1976) numa taberna de Viena certa noite e aquele som não propriamente triste, mas nostálgico, não exatamente alegre, mas vibrante, o paralisou. Decerto, essa é uma das produções em que a música se impõe com mais força sobre um enredo, determinado com a precisão de cuco suíço quando a ação se inicia, quando arrefece, até o momento de parar e tudo ser retomado outra vez.
Se a música tem essa importância toda num filme, poder-se-ia que talvez a história não fosse lá grande coisa, mas um roteiro que junta Orson Welles (1915-1985) e Graham Greene, além do próprio diretor, não pode ser menos que promissor. E a promessa se cumpre. Depois de um rápido prólogo falado, “O Terceiro Homem” faz um registro da Viena no final dos anos 1940, tentando renascer das cinzas depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Holly Martins transita pelos retalhos da cidade arruinada, distribuída entre França, Estados Unidos, Rússia e Reino Unido, se esgueirando por entre escombros a fim de escapar do clima de caça às bruxas que ainda impera. Por toda a parte, há burocratas em quem não se pode confiar, e Martins, um tipo ingênuo apesar da capa de autor de westerns violentos, escritos sob a influência de hectolitros de uísque, é só mais um americano enxerido no lugar errado procurando encrenca, conscientemente ou não. Joseph Cotton (1905-1994) imprime a seu personagem essa carga de dubiedade, muito apropriada numa trama em pouco de fato é o que leva a crer que seja. O escritor se deslocara a Viena convidado por Harry Lime, um ex-colega de faculdade, que acabara de morrer e está sendo enterrado quando ele chega à cidade. A pergunta que encerra este primeiro ato da narrativa é como lime teria morrido, mistério que se estende até o desfecho, e Welles é outro que se revela o ator ideal para um papel.
A morte de lime deixa um rastro de fios soltos que Martins é incapaz de amarrar. Aos poucos vai se dando conta de que o amigo tinha alguma coisa de nebuloso, o que o testemunho de Calloway, o oficial britânico de Trevor Howard (1913-1988), vem ratificar. Lime, segundo Calloway, era um sujeito perigoso e o melhor que Martins tem a fazer é tomar o próximo trem e voltar para casa, o que ele faria, não fosse Anna, a garota que vira junto à sepultura de lime. Talvez Anna, interpretada por Alida Valli (1921-2006), tenha respostas para as tantas dúvidas do escritor, e seu interesse por ela, claro, vai muito além disso.
A devastação geográfico-moral da europa é um dos motes de “O Terceiro Homem”, conduzido por gente que sabia o que estava dizendo. Carol Reed serviu na unidade de documentários de guerra do Exército Britânico, e a passagem de Graham Greene pelo quadro de espiões da rainha, rascunho de um 007 nada glamouroso, é notória. Reed teve de bater de frente com o todo-poderoso David O. Selznick (1902-1965) e brigar por seu filme; o produtor americano queria filmar em sets — expediente muito mais econômico e sempre exitoso —, levar a história para um lado meio galhofeiro e encarregar Noel Coward (1899-1973) de dar vida a Harry Lime. Felizmente, Reed venceu a parada e conseguiu deslocar toda a equipe à capital da Áustria, captando com todo o realismo as pilhas de entulho que ladeavam os rombos de bombas lançadas contra Viena já fazia alguns anos, deixando à mostra as ruínas de um velho mundo que caducara. Tudo isso, como dissemos, suavizado e intensificado pela cítara de Karas, compositor de “The Third Man Theme”, a principal canção do longa e um dos maiores hits de 1950.
Rostos são outro destaque no filme de Carol Reed. O de Joseph Cotton, meio aéreo, quase pueril, evidencia a maldade na expressão de Harry Lime e seus amigos, o criminoso Barão Kurtz, vivido por Ernst Deutsch; o esperto Doutor Winkel, de Erich Ponto; o asqueroso Popescu, interpretado por Siegfried Breuer, e sua cara de rato. Todavia, há quem inspire benevolência, como o porteiro Karl, de Paul Hörbiger (1894-1981), cujo ar meio apalermado esconde pistas que apontam para o esclarecimento de alguns segredos, também o caso do musculoso sargento Paine vivido por Bernard Lee (1908-1981), tão abrutalhado e ao mesmo tempo tão doce.
Flashbacks permitem que Harry Lime nunca deixe o eixo da história e Orson Welles aproveita para comprovar seu talento inestimável no momento mais alto de “O Terceiro Homem”, quando seu personagem diz um dos discursos mais célebres da história do cinema. Este é um filme de sutilezas e o miado de um gato, close de sapatos descomunais, luzes na janela, o tiro se refletem no semblante perturbado de Lime, que também tem sua parte de colaboração quanto a dar um fecho a uma trama de insinuações, que não se furta a também falar de amor em meio ao desalento e ao abandono de todo um continente depois de uma guerra brutal. Um registro luminoso do cinema sobre tempos duros, em que a inocência não cede lugar à barbárie, e por essa razão, paga um preço. Tudo muda para que tudo permaneça igual.
Filme: O Terceiro Homem
Direção: Carol Reed
Ano: 1949
Gênero: Drama/Guerra/Romance
Nota: 10