Um dos sinais mais característicos da sociedade neste século 21 é o prolongamento infinito da adolescência. Adultos de trinta e muitos anos se comportam como garotos e garotas de vinte e poucos — se não menos —, e arrastam sua imaturidade para todos os campos da vida, do amor à carreira, passando por outros círculos sociais ainda mais aquosos, a exemplo do das amizades. Esses desajustes entre a idade cronológica e a forma de encarar a vida ficam patentes nos personagens de “Bonecas Russas”, comédia cheia de todas as muitas críticas e sátiras que os franceses incorporaram ao seu cotidiano desde sempre, um jeito inestimável de enxergar o mundo.
“Bonecas Russas”, trabalho de fôlego do diretor francês Cédric Klapisch, é a segunda parte da trilogia iniciada com “O Albergue Espanhol” (2002), e encerrada com “O Enigma Chinês” (2013). O elenco, encabeçado por um Romain Duris irretocável na condução de seu Xavier, um tipo meio leviano, meio perdido, retrato da própria Europa e seus constantes deslizes econômicos-políticos-morais — que nunca restam impunes, ressalte-se. A produção de 2005 marca uma volta de Klapisch ao que já expusera em “O Albergue Espanhol”, exame minucioso acerca da debacle geográfico-existencial do Velho Mundo.
Se no filme de 2002, Klapisch falava sobre a renúncia de Xavier à aspiração pela estabilidade da vida de funcionário público do Ministério da Fazenda para tornar-se escritor — uma alusão, ainda que personalizada, de “Notas do Subsolo”, de Dostoiévski —, o grande sonho de sua vida e sua real vocação, aflorada com toda a força depois de sua permanência numa moradia comunitária em Barcelona, em “Bonecas Russas” o cineasta segue analisando os desdobramentos da experiência na vida dos seis personagens com quem o protagonista conviveu a uma distância perigosamente curta. É forçoso dizer que as origens de cada um, nascidos em seis países diferentes da Europa, refletem diretamente no jeito como reagem diante das pequenas dificuldades do cotidiano. As possíveis virtudes dessa convivência internacional, parte de um programa de intercâmbio de estudantes universitários, choca-se frontalmente com as desventuras pelo submundo do crime e do abuso de entorpecentes.
Conforme se disse, o passar dos anos não implica em desenvolvimento psicoemocional, o que, por óbvio, é uma praga em sociedades de todo o mundo, não só da Europa. O Velho Continente talvez catalise esse processo, como sói acontecer com quase todos os demais, de uma maneira mais transparente, mais honesta, até em estabelecer os inúmeros contrapontos entre ser amado e bem-sucedido. A questão, como a apresenta Klapisch, remonta a uma tese interessante, que se poderia enunciar como a saúde dos relacionamentos ser inversamente proporcional ao destaque que os indivíduos (ou indivíduos específicos) adquirem na trajetória profissional. É como se o sucesso — materializado pelo dinheiro, goste-se ou não — fosse um salvo-conduto para se agir da forma como se bem entende, numa vasta gradação de psicopatias. Xavier não chega ao ponto de matar ninguém — caso do personagem central de “Psicopata Americano” (2000), de Mary Harron, por seu turno a encarnação do que deu errado com os Estados Unidos —, mas se chegasse a fazê-lo, certamente contaria com o silêncio cúmplice de seus iguais.
A grande reviravolta de “Bonecas Russas” é a descoberta de um obstáculo que atravanca o progresso do personagem de Duris na carreira de escritor: seu desempenho oscila de um pequeno trabalho de adaptação para outro, mas Xavier não consegue atingir o auge de seu potencial. Se antes o mero delineamento do sucesso lhe inspirava uma displicência amorosa, agora é obrigado a provar de seu próprio veneno, assumindo uma namorada lésbica para satisfazer a curiosidade — e as cobranças — do avô, temeroso do que será da vida do neto. A volta de Martine, a ex-namorada de Xavier interpretada por Audrey Tautou, se presta a tornar o cenário ainda mais confuso, e a hesitação de uma e do outro servem como um respiro cômico que oxigena toda a história.
Os acontecimentos se sucedem sem muita cerimônia no roteiro do próprio Klapisch, uns sobre os outros. William, o amigo inglês dos tempos em que os dois (e mais cinco) eram como personagens de um romance infanto-juvenil de meados do século 20 em Barcelona, desembarca em Paris a fim de comunicar aos mais chegados que está de casamento marcado com uma bailarina russa e a ciranda recomeça. Como uma boneca russa, típica de suas replicações quase intermináveis, o personagem de Kevin Bishop vem para, por meio de flashbacks, falar do encontro entre William e Natacha, de Evgenia Obraztsova, pontuando também o desencontro, de Xavier com quase todo o elenco — e consigo mesmo.
A descrição desses envolvimentos românticos resultam menores diante da riqueza do conflito de Xavier. Klapisch perde um tempo precioso tentando persuadir o espectador de que os diferentes idiomas — o russo de Natacha e o inglês de William — não teriam importância quando confrontados com a força de um amor em formação. Ainda que a licença poética do argumento se imponha em alguma medida, não custava usar de um pouco do realismo que assinala boa parte de “Bonecas Russas”, grande acerto de sua condução, bem como abreviar as passagens sobre como Wendy descobre a infidelidade (óbvia) de Xavier. Não é necessário ser nenhum gênio para se saber que o protagonista acabaria tendo dificuldades para se manter na linha com a personagem de Kelly Reilly, dada a maneira como se deu a aproximação entre os dois. Mais estapafúrdia ainda é a reconciliação deles, quando o diretor compromete o excelente andamento do longa até então.
O casamento de William com sua boneca russa em São Petersburgo constitui um desfecho previsível para um roteiro pleno de possibilidades, mas que soçobra na comodidade do final feliz. Casamentos precisam de mais que belos cenários para serem jubilosos.
Filme: Bonecas Russas
Direção: Cédric Klapisch
Ano: 2005
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Nota: 8/10