A necessidade de se autoafirmar, de saber que está no caminho certo — por mais que sua intuição lhe sopre a verdadeira resposta, que só seu próprio coração conhece — assalta a natureza humana de tempos em tempos desde sempre. Animal gregário (e sentimental), o homo sapiens precisa de aprovação, temos que ter certeza de que estamos agradando. A menor hipótese de decepcionar aqueles que julgamos caros nos apavora, e termina por nos empurrar para alguma forma de isolamento, outro dos tantos paradoxos da condição do homem, que tenta se livrar do jugo do fracasso desenvolvendo estratégias de poder seja lá em que medida e com que propósito. Tão perdidos estamos no mundo que nos julgamos mais inteligentes, mais especiais, superiores a quem está ao nosso lado, partilhando das mesmas fraquezas e usufruindo de iguais pequenos sucessos — e que, mais do que isso, muitas vezes conhece nossas carências tanto como nós mesmos. Cada vez mais assoberbado de trabalho e, por conseguinte, das tantas coisas que inventa dia após dia e sem as quais acha que não pode mais viver, o homem do século 21 é um escravo de si mesmo, arrastando os grilhões da falta de amor-próprio, da vaidade, da vontade oca de se destacar mesmo que sem nenhum mérito.
Liberdade é uma das maiores conquistas da civilização. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 10 de dezembro de 1948, ao nascer, cada indivíduo torna-se um ente que conta com a proteção do Estado, dos governos, da sociedade em que passa a viver e de seus congêneres — ao menos na bonita teoria. Na vida real, o que se vê é muita gente ganhando fortunas precisamente às custas de quem tem menos, o que degringola num processo de vale-tudo em que a vida humana é precificada e só tem valor aquele que dispõe de alguma coisa palpável para mostrar. Por esse motivo, passamos a disputar uns contra os outros a fim de garantirmos nosso lugar na próxima etapa do jogo, sem nos importarmos com detalhes como ética, solidariedade, piedade e mesmo razão. O que interessa é vencer custe o que custar, e essa visão de mundo, a da vitória como fim último da existência, é alimentada em seu apetite voraz por certos programas de televisão, que patrocinam o pior da alma humana: a barbárie, a vontade de se dar bem sem que se meçam as consequências, o pouco caso com o outro, a miséria intelectual. A Bula preparou uma lista com quinze títulos que, em maior ou menor proporção, aludem a esses desvios espirituais, seja no que diz respeito à sanha por poder, seja no que fala mesmo às circunstâncias de se encontrar apartado do convívio social mais amplo. “O Quarto de Jack” (2015) é, decerto, o que mais se aproxima da proposta de confinamento desses shows nada reais, uma vez que no filme dirigido por Lenny Abrahamson a personagem central e seu filho passam cinco longos anos imprensados num cômodo diminuto, criminosamente encarcerados por um algoz patologicamente débil. Por outro lado, quem aceita esquecer da vida e ter os hábitos mais comezinhos registrados pela lente de câmeras que os projetam para toda a parte deve estar ciente de que irá despertar sentimentos os mais disparatados, em especial os pouco nobres, experiência tão nova que mesmo os participantes das primeiras edições desses programas não vivenciaram. Em “Rede de Ódio” (2020), o polonês Jan Komasa aborda a capacidade destrutiva das novas tecnologias, a serviço tanto da evolução como do atraso e da violência. “O Quarto de Jack”, “Rede de Ódio” e os outros treze filmes da nossa relação, elencados do mais recente para o mais antigo, todos na Netflix, reafirmam a importância do cinema como um veículo de vanguarda quanto a pensar os grandes problemas do homem, se adiantando a outras questões. Há quem prefira a burrice, todavia, mas esse é assunto para uma próxima coluna.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Se existe alguém que aproveitou o confinamento obrigatório por causa da pandemia de covid-19, desde março de 2020, essa pessoa chama-se Bo Burnham. O comediante se valeu justo da falta de interação com o público a fim de desenvolver novas técnicas e novos propósitos para a carreira. Em cartaz desde maio na Netflix, a comédia musical com DNA de documentário tem sido aclamada por crítica e espectadores graças à originalidade. Artista multitalentoso, Burnham dirigiu “Oitava Série” (2018) e está no elenco de apoio de “Bela Vingança” (2020), vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original de 2021.
Baseado no livro de Héctor Joaquín Abad Faciolince que lhe empresta o nome, “A Ausência que Seremos” conta a história do médico Héctor Abad Gómez (1921-1987), pai de Faciolince, que se destaca também pela defesa dos direitos humanos na Colômbia durante a ditadura do general Gustavo Rojas Pinilla (1900-1975). A partir da compreensão do menino Héctor, são apresentados detalhes sobre sua relação com o pai, até a narrativa desembocar no assassinato de Abad Gómez por milicianos envolvidos com o tráfico de drogas. Héctor Abad Faciolince se tornou um dos mais respeitados escritores da América Latina; os assassinos de seu pai nunca foram punidos.
O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, caos, tragédia, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se absorve das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.
No ponto mais alto da disputa pelo espaço entre Estados Unidos e União Soviética, a Orbit-4, nave que levava uma tripulação russa, volta com um único ocupante vivo. Ele está desmemoriado e, portanto, a investigação a fim de se saber o que teria acontecido com o restante da equipe vai ser mais difícil do que se pensava. O astronauta permanece isolado numa instalação do governo, tratado como um criminoso, à espera de Tatiana Klimova, psicóloga encarregada de averiguar o que teria se passado e por que o astronauta se esqueceu de tudo quanto viveu ao longo da missão. Essa é a única possibilidade de se decifrar o enigma.
No fim da década de 1990, Joanna, recém-formada em literatura, é contratada por uma agência literária, ainda que conheça seu talento para escrever. Enquanto esse seu potencial não se revela para o mundo, ela se vale de sua habilidade com as palavras numa de suas atribuições profissionais: redigir cartas para responder aos fãs em nome de Jerome David Salinger (1919-2010), o maior agenciado da empresa — e também conhecido por “O Apanhador no Campo de Centeio” (1951), sua obra máxima. Esmerando-se mais do que o recomendável no exercício de sua função, Joanna se aproxima o quanto pode dessa personalidade meio obscura, aproveitando para saber o que realmente lhe falta para também virar uma literata de sucesso.
“Rede de Ódio” já impacta pelo nome. Certamente não foi por acaso que optou-se por traduzir com essa expressão o título da produção polonesa. O filme de Jan Komasa deve muito de sua genialidade ao personagem principal, mas ampara-se, por óbvio, no contexto histórico em que está inserido e na época em que vivemos, no Brasil, sobretudo. O uso deturpado da inteligência artificial — cada vez mais inteligente, ao passo que o homem, por sua vez, parece emburrecer a olhos vistos — fomenta a discussão sobre em que medida um indivíduo agressivo pode se dizer afetado pela toxicidade da internet ou se sua truculência é fruto de sua própria natureza patológica. Komasa explora essa dicotomia — logo resolvida, em face da superioridade da segunda hipótese — à luz de Tomasz, que sai do interior da Polônia para a capital Varsóvia a fim de estudar direito, graças à generosidade de estranhos. O rapaz não é simplesmente ambicioso, e a perspicácia do diretor aliada ao talento soberbo de Maciej Musialowicz, desde sempre deixam muito claro que está ali um sociopata que, como quase sempre sói acontecer, é um sujeito cuja capacidade intelectual supera a de quem o rodeia. Ele se vale das facilidades que as redes sociais proporcionam para levar a termo os objetivos que busca alcançar, sem poupar quem quer que seja. Não se deve deixar passar nada ao longo das 2h15 de duração da trama, que oferece uma mensagem edificante, sem ser — ou parecer — moralista. Há que se estar sempre atento para os Tomasz que nos apresenta a vida.
Produção original da Netflix dirigida e coescrita por David Michôd, “O Rei” se debruça sobre a vida de Henrique V (1386-1422), soberano da Inglaterra entre 1413 e 1422. Plena de monarcas que abdicariam do trono se pudessem, a dinastia real inglesa impõe a Henrique V assumir os destinos de sua nação, tarefa árdua em se considerando seu temperamento muito mais inclinado ao de mero plebeu que de um dos homens mais influentes do mundo. No filme, a ascensão de Henrique V ao poder quando da morte do pai, Henrique de Bolingbroke, é esquadrinhada à luz dos sucessivos desentendimentos entre a Inglaterra e a França, que redundam na Guerra dos Cem Anos (1337-1453).
Certamente a atriz Nicole e seu marido Charlie, diretor de teatro, pensavam que casamento era mesmo um conto de fadas e, imaturos demais para lidar com os tantos problemas que uma relação a dois implica, acabam se separando. No começo, tudo corre da forma mais civilizada possível, e os dois preferem seguir com os trâmites sem a interferência de advogados, mas aconselhada por uma amiga, Nicole procura orientação profissional e entra em cena Nora Fanshaw, especialista em divórcios, cuja obstinação em deixar a outra parte na rua da amargura é alvo de inveja no mundo jurídico e de temor de quem ousa se levantar contra ela numa causa (e Laura Dern, sua intérprete, parece ter se contagiado com a gana de vencer de Nora, visto o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante; de fato, um trabalho magistral). As muitas desventuras do processo incomodam sobretudo Charlie, mas à medida em que os ataques entre os advogados se sucedem e são expostas as intimidades de uma e outro, Nicole se convence de que tomara a pior decisão que poderia. No meio do fogo cruzado, Henry, o filho dos dois, entende perfeitamente o que está acontecendo, mas ainda muito indefeso diante da leviandade dos adultos, assiste à baixaria toda sem deixar claro ao espectador o que pensa.
Poucos filmes conseguem o feito de, ao condensar diversos tipos de linguagem e de manifestações artísticas, criar uma obra absolutamente original — e bela, muito bela. Com “Roma”, Alfonso Cuarón não só chegou lá como tornou-se um dos paradigmas do que se pode chamar de novíssimo cinema. O enredo talvez não tivesse nada de excepcional, mas a forma como Cuarón leva as passagens sobre o dia a dia de uma família abastada num bairro nobre da Cidade do México — a Roma do título — no começo dos anos 1970, tendo sempre por alvo a empregada doméstica da família, é impecável. A história de Cleodegarda, a Cleo, é pungente de tão comum. Conhecemos dezenas de Cleos, sobretudo no Brasil, remanescente de um regime escravocrata abolido nem faz tanto tempo, e paternalista até o fim do mundo. É angustiante a forma como sua vida se esvai. A protagonista não vê nada em seu curto horizonte que não seja se empenhar no serviço doméstico: recolher as fezes de Bojas, o vira-lata da casa, lavar o quintal, arrumar uma casa enorme, cozinhar para seis pessoas, fora os empregados… Aos domingos, arruma tempo para ir ao cinema com um rapaz que conhece por intermédio da colega de ofício que divide as tarefas com ela. Mas nem nisso a vida lhe sorri: ao se descobrir grávida, conta a novidade (que não lhe parece nada boa) ao namorado durante a sessão e é abandonada ali mesmo. A narrativa tem uma ligeira virada nesse ponto, susceptibilidades de Cleo são exploradas mais a fundo e a sensação de incômodo do espectador ao se colocar na pele da criada é insuportável. Não se nota se Cleo gosta da vidinha que leva, se apenas a tolera, se a odeia. A única certeza que se pode ter é que ela é simplesmente empurrada pelo destino. A cena na praia, quando o filme já se encaminha para o desfecho, é de deixar o peito apertado. Impossível não se emocionar — e, igualmente, não se enfurecer — com a ingenuidade de Cleo. Superado o episódio, a vida torna ao leito, o que não é exatamente bom. Preterido no Festival de Cannes 2018 por pinimbas entre os organizadores da premiação e a Netflix, “Roma” teve uma recompensa justa e levou o Oscar de Melhor Fotografia daquele ano. Fellini puro, poesia pura, cuja dramaticidade a linda fotografia em preto-e-branco realça, a grandeza de “Roma” merecia muito mais.
Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um humano. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o homem certo para o projeto certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Em “Blade Runner 2049”, Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à altura.
A Itália no verão se traduziria no lugar perfeito para as descobertas de um garoto rico em férias, e descobertas nunca se dão sem boa dose de conflito. Em “Me Chame Pelo seu Nome”, o professor universitário Perlman, especialista em cultura greco-romana, recebe a visita de Oliver, estudante que se dispõe a ajudá-lo numa pesquisa. Oliver, bonito, sensível e noivo de uma moça, logo desperta o interesse de Elio, filho do professor Perlman, instantânea e assustadoramente magnetizado pela figura apolínea do discípulo do pai. À medida que se aproxima de Oliver, Elio esquece de si mesmo e vive o amor — que, para ele, se manifesta de forma repentina e inusitada —, mesmo tendo de responder, ainda muito imaturo, às tantas questões que o afligem.
“My Happy Family”, coprodução da Geórgia com a Alemanha e a França, instala o espectador na sala de uma típica família tradicional do extremo Leste Europeu, patriarcal e conservadora. Entre eles vive Manana, cinquentona, sem voz, amargurada, oprimida pela mãe, marido e filhos. Ela tenta não enlouquecer em meio a tanta gente dividindo o mesmo espaço, e vai administrando os conflitos que irremediavelmente surgem. Até que resolve dar uma guinada radical, antes que seja tarde demais, e sai de casa, deixando para trás tudo o que tem e as referências sobre o que é a vida em sociedade. A seu favor, a imensa vontade de ser, enfim, feliz, com todos os percalços em que essa decisão possa implicar.
Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2010, “O Quarto de Jack”, a força do enredo está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio. Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e do formidável Jacob Tremblay, mãe e filho enclausurados depois que Joy, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é cortante observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack faz do mundo se constitui a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso; tanto pior se sabemos que o livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão. Joy também consegue se ver livre de seu inferno particular, graças a um plano cuja participação de Jack é vital. Crianças têm o condão de ser (quase) sempre adoráveis e é o que também se observa com Tremblay, que conquista o público sem o menor esforço. A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de empenho quanto a exorcizar alguns fantasmas mais encruados em sua alma. A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família — à custa de um gordo cachê — se revela um tiro que sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima, até que a sequência final dá a entender que Joy e Jack, aos trancos e barrancos, foram felizes para sempre.
Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido indiferente e a mulher neurótica.
Aos dez anos, Chihiro é uma menina que, como quase todas as outras crianças da mesma idade, pensam que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo, e, claro, vira uma fera ao saber que terá de se mudar com os pais. Eles dão início a essa longa viagem, mas a menina nota que alguma coisa dera errado. Seu pai certamente se perdera e conduzira a família para a entrada de um imenso túnel, guardado por uma estátua. Ainda que a situação se apresente o seu tanto inusitada, os pais de Chihiro entram, levando a menina consigo. Depois de andarem por algum tempo, chegam a um vilarejo aparentemente abandonado, embora haja um restaurante em cujo balcão estão servidos vários pratos. Enquanto os pais se fartam, a protagonista sai num passeio e conhece Haku, que lhe recomenda deixar o povoado o quanto antes. Chihiro fica impressionada com a veemência do menino e volta correndo ao encontro dos pais. Para sua surpresa, nessa fábula sobre autoconhecimento e procura de respostas para os insondáveis mistérios da existência, ela se depara com dois porcos gigantescos. Começa um novo caminho para Chihiro, através de um mundo fantasmagórico, cheio de seres monstruosos e completamente hostis à presença humana.