Fighting Krishna

Fighting Krishna

Quase sou assaltado na esquina da Teodoro com a doutor Arnaldo, logo na minha primeira semana paulistana: “Perdeu”. Três anos no Rio e não me aconteceu nada parecido: “Hã? Perdi o quê, outro Jabuti?”  Mais um pouco chegava na estação Clínicas: “Tá na Disney, tiozão?”

Talvez recepção tão peculiar, e mais um conjunto de coisas mortas que não interessam a ninguém, vagas lembranças e o fato de ter sido expulso de minha própria solidão, me conduzam a conclusões arbitrárias e precipitadas: número 1. Perdi o escambau; 2. Fui promovido à “tiozão” (talvez a nova patente seja um elogio); 3. As últimas coisas que restarão ao paulistano serão ódio, isolamento e perplexidade. E esse abantesma-recíproco também vale para aquilo que está em volta, ou seja, para o resto do Brasil que não cultiva qualquer simpatia por São Paulo e sua gente.

Ocorre que o Brasil odeia São Paulo na mesma proporção que São Paulo odeia o Brasil. Igualzinho. E uma coisa posso afirmar sem a menor chance de errar: “nós, paulistas” não temos o monopólio da estupidez. A prova disso é que reagi ao assalto.

O contexto ou o resumo da história localiza-se na zona sul da cidade, depois de Interlagos, do lado de lá da ponte Joao Dias. São as classes C e D que representam o Brasil que engoliu São Paulo à revelia, para muito além de seus domínios estéticos e morais. Uma novidade que sopra do abismo. Um oxigênio(?) que a Oscar Freire terá de aprender a respirar na marra e na base do ódio, sim. E é esse abismo que não somente produz nossos artistas e bons selvagens* mas que — também — é responsável por fazer girar uma engrenagem nada desprezível da economia, como acontece com o “resto” do Brasil.

Os pais e/ou responsáveis que transitam na Oscar Freire, no Iguatemi, Berrini e outras regiões “diferenciadas”, fiquem à vontade para torcer os narizes, parar em fila dupla e viajar a Disney. Se tiverem muita sorte podem até escapar ilesos do próximo assalto.     

E aqui cabe mais um vaticínio. Os netos e bisnetos do coronel alagoano (“som ao redor”) podem até adotar os shoppings, cercadinhos e condomínios que emulam o modo de vida babaca do paulista; mas a alma paulistana, sobretudo aquela que imigrou da Europa no final do século 19 para substituir os escravos nas lavouras de café, e se ferrou, foi explorada e humilhada mas com sacrifício, estudo, caretice e muito trabalho fez a roda girar, essa cabe inteira no Allianz Parque, e vai ficar por lá mesmo. Não adianta. Podem até levar o Mundial mas não vai ornear. As únicas coisas que se duplicarão a partir desta alma — por uma questão de reciprocidade e devolução — são o ressentimento, a discriminação e o racismo, devidamente miscigenados.

Noutras palavras isso quer dizer que o casal São Paulo & Brasil, vai continuar dormindo em camas separadas e fingindo amor eterno porque — aparentemente e como rezam a etiqueta e as conveniências — um não pode viver sem o outro. 

E não dá para falar em Brasil sem falar em São Paulo, porque São Paulo é o lugar onde se originou a metástase brasileira:  o Aleph tropeiro subiu o Tietê e se alastrou, ocupou e adoeceu um continente, ouro e pólvora, jugo e poder. Eis a matéria-prima do buraco negro para onde todos os brasis convergem, enquanto a própria cidade só fez/faz se dissipar e perder a identidade, devorando a si mesma e a todos que por ela são acolhidos e triturados.

Portanto, creio que é conveniente falar do entorno chamado Brasil.

O ódio e a vontade de exterminar o semelhante, repito, não são supostas exclusividades dos frequentadores e vizinhos do Allianz nem das peruas do Iguatemi e muito menos dos garçons, enfermeiras, balconistas, manicures, poetas, repentistas e trombadinhas que vem das periferias para servi-los(as).

O ódio é generalizado e recíproco. E se eu dissesse que tive uma loja de tintas e uma confecção de fundo de quintal que, graças a Deus, faliram. Que conheci a ira dos credores e dos senhorios. Pedi dinheiro emprestado, quebrei, levantei, sacudi a poeira, comi a mulher do gerente do supermercado “me fode paulistafilhodaputa” e fui jurado de morte algumas vezes. Nos idos de 1985 minha alma foi subtraída numa praça de pedágio em Jaguariúna. Uns sessenta quilômetros depois, perto do trevo de Mogi Mirim, a recuperei e dei a volta por cima e caí outra vez, assim sucessivamente: e se eu dissesse que fiz muitas barbeiragens mas que sobretudo testemunhei muita, mas muita merda pelo caminho, e se eu dissesse que o ódio brasileiro sempre esteve ao meu lado.

E se eu dissesse que não é coisa que inventei. Mas que o ódio brasileiro se adquire às vezes por inércia e às vezes por preguiça mesmo. Se vacilar, ele vira seu amigão. Não fui eu quem inventou o complexo de vira-latas. Nem o de pitbull.

Faz mais de 30 anos que volto para São Paulo. Entre idas e vindas, experimentei situações de violência e intransigência numa época nada virtual, porém igualmente sórdida e igualmente escrota. A diferença para os dias de hoje é que nossos coleguinhas de ódio não tinham, digamos, os “instrumentos” para serem eles mesmos. Todavia, o ódio sempre esteve presente — e, embora nunca tenha sido prerrogativa de branco, preto, nem de monge nem de executivo, ele, o ódio brasileiro, sempre foi muito bem preservado em escaninhos, divisões, muros e camadas de hipocrisia. Negá-lo é fomentar mais ódio, muito bem, quase concordo. Assumi-lo todavia, afirmá-lo como solução de reparação é a pior viagem, o desastre total, fratricídio. Foi nessa intercecção explosiva que o texto de Antonio Risério FSP 16/1 chafurdou e, claro, gerou negação, protestos, ódios recíprocos e redobrados e super previsíveis, velhos conhecidos.

Até há bem pouco tempo as pessoas sabiamente o guardavam, o ódio, numa caixinha de pudicícias como se fossem joias de família, era o bem-bolado brasileiro disfarçado de cordialidade que, apesar de todos os pesares, dava conta do recado. Male male foi o que nos salvou da divisão e da carnificina que os norte-americanos tão bem conhecem e experimentam desde a guerra da Secessão até hoje.

Quem puder ler “A morte e a Morte de Quincas Berro D’água”, “Dona Flor e seus Dois Maridos” e até “Tenda dos Milagres” — os livros que Jorge Amado escreveu depois que caiu na real, isto é, quando trocou o stalinismo tosco pela beleza hipócrita e tesuda do povo brasileiro —  então, quem se dispuser a abaixar a guarda e tiver um mínimo de sensibilidade, vai entender que antes da sanha por reparação e vingança, antes do “nós contra eles” havíamos alcançado quase que uma convivência pacífica, ou algo perto isso, digamos que era uma espécie de equilíbrio hipócrita na corda bomba ( e daí?), algo tolerável e azul-marinho, um Brasil mais inteligente, viçoso, menos empestado.

Trata-se da jabuticaba baiana — doce instinto de preservação — que permitiu a Jorge Amado, apesar de suas limitações, transformar-se num autor universal, e o Brasil numa equação/destino idealizado, disputado e invejado pelo resto do mundo. Talvez esteja aí raiz do famigerado país do futuro, que teria tudo para brotar novamente se não fôssemos tão estúpidos, bastaria sermos mais Vadinhos, muito mais Quintanas, e bem menos Marighellas.

Bem, para reforçar o raciocínio, e tentar ser mais explícito, vou contar dois episódios que aconteceram comigo em meados dos oitenta e começo dos noventa do século passado.

Troquei um Fiat Uno por uma casa de madeira na praia do Santinho, em Florianópolis. Idos de 1987. Santinho era uma praia praticamente deserta e, embora eu tivesse meus livros como companhia, também tinha vizinhos. E ter vizinhos naquela época que não existia tinder nem photoacompanhantes, e que o único orelhão ficava a dois quilômetros de distância, enfim, ter vizinhos naquele final de mundo, podia significar a diferença entre morrer na punheta ou trocar umas ideias com as figuras excêntricas que passavam dia e noite murmurando para krishna do outro lado da cerca. Acabei me apaixonando pela mulher do monge hare-hare. Bem, posso dizer que ele não gostou nada de experimentar um par de chifres e quase saímos na porrada, lembro como se fosse hoje:

—Vou te encher de porrada, paulistafilhadaputa.
— Vem monge, pode vir. Além de monge é corno.

O fato é que, no cimo dos meus vinte e poucos anos, o sangue bandeirante borbulhou e eu ia desjarretear os membros daquele babaca metido a monge, todavia ele deu um passo para atrás quando vislumbrou aldeias devastadas e altares profanados, velhos, crianças e mulheres grávidas passados a fio de espada, urubus sobrevoando charcos empestados de vísceras e a mulher dele dando gostoso para mim; imagino que ele também queria me matar, mas desistiu, enfim, quando viu Raposo Tavares, Anhanguera, Dias Velho e Hebe Camargo reverberarem no brilho  dos meus olhos possessos e injetados de morte: “paulistafilhadaputa”.

Outro episódio ocorreu quando eu abastecia a camionete num posto perto de Pouso Alegre, a caminho de Ouro Fino — famosa cidade do “Menino da Porteira” — era 1990. Nesse ano, aprendi que as palavras “raça” e “cultura” são as mais falsas e canalhas do dicionário. Não queria escrever isso aqui, e estragar as expectativas dos leitores da Bula. Também não vou me estender sobre o incidente e a confusão que ocorreu imediatamente na sequência. Gente morta. Basta dizer que, à época, eu era conhecido como — adivinhem? — “paulistafilhadaputa” e que, naquele dia enfumaçado, os fatos não estavam a meu favor. Como não estão agora. No entanto, como não sou 100% mentiroso e procuro — na medida do possível — não me omitir diante daquilo que me é jogado nas fuças, vou generalizar e jogar de volta. Gostem ou não gostem, aqui vai:  São Paulo, capital, não orneia com o interior nem com o litoral de São Paulo, e se não orneia com si mesma como é que vai se dar com o resto do Brasil?

Existe ódio. Um sentimento mal disfarçado, podre, latente, familiar e recíproco. E não é pouco ódio não. E é fundamental não esquecer que o ódio nos espreita e carrega milhares de disfarces além de boas, inconfessáveis e estruturais intenções: o ódio brasileiro é doce como uma compota de figo caseira e é da natureza dele, num primeiro momento, afagar, concordar contigo, o ódio brasileiro pode surpreendê-lo: ele é o rei dos elogios e dos disfarces, às vezes aponta pequenos defeitos para valorizar as virtudes que nem você sabia que tinha, como também pode ser grosseiro e impositivo quando pretende marcar território. Só no Brasil o ódio pode ser radical e social-democrata ao mesmo tempo, nosso ódio é paciente e desprendido e jamais vai perder o timing, ele é a Vovó da Casa do Pão de Queijo (em Minas o ódio é extraordinariamente bem representado, meu velho compadre), ele é o confidente mais querido que planeja seu fim toda vez que o beija na face e, uma hora — pode escrever — a maionese vai azedar. 

Àqueles que quiserem acreditar no amor, eu desejo toda sorte do mundo. Contem comigo, é por isso que escrevo, peace and love.  Claro que sim, vamos sempre dar uma chance para a paz e o amor, para a solidariedade e os livros meia-boca porém essenciais de Jorge Amado, todos os votos de confiança para o tesão, para a hipocrisia brasileira e a compaixão, porém sejamos “simples como as pombas e prudentes como as serpentes” by Jesus, o Cristo.

Portanto, quem puder amar, que ame e seja feliz e atire a primeira flor… porque a primeira pedra me atingiu naquela tarde no posto de gasolina em Pouso Alegre. De chofre, bem no alvo, de forma irrevogável e para sempre, e as outras pedradas viriam na sequência e chegam até hoje, implacáveis. Se sobrevivi é porque talvez seja mesmo um paulistafilhadaputa e sempre irei reagir até mesmo quando der a outra face — por estratégia, imprudência premeditada ou instinto de sobrevivência — e que venham as pedradas, as flores e o próximo assalto, Deus é mais.

* Tema da próxima crônica “Borogodós e modernismo brasileiros — 100 anos de jequice”.