Diz o ditado que tudo nessa vida tem um lado bom e um lado ruim. Faz sentido. É possível. Até mesmo, no caso da morte, a depender das circunstâncias, pode ser que se vislumbre uma virtude, como dar números finais ao sofrimento exaustivo e prolongado de alguém que padece por conta de uma doença grave, incurável, terminal. Morrer é bom, mas, a gente nunca se acostuma.
Já faz mais de dois anos que a humanidade sofre com a pandemia. Bem feito para o ser humano? Penso que a peste seja um sinal. Nada de sobrenatural, entendam. A divindade não tem nada a ver com a miséria humana, a não ser, pelo fato de ter criado o homem à sua imagem e semelhança. Acho que Deus cometeu uma lambança, mas, isso é matéria para um outro dia. O sinal a que me refiro seria uma comprovação cabal de que estamos ferrando o planeta e a nós mesmos, ao levarmos um estilo de vida consumista, perdulário, inconsequente e claramente insustentável em termos ecológicos. A começar pelo lixo que produzimos no cotidiano. Para onde vai o látex da camisinha? E barbeador descartável? E a boneca inflável, meu amor?
A vida é tragédia e é piada. Pensando na aparente dicotomia dos fatos, fiquei a matutar que um lado bom da pandemia é restar comprovado que, sem ciência, não há presente, quem dirá, futuro; que ser rico não exime o bacana de ser dizimado por pragas microbianas invisíveis; e que as confraternizações natalinas não são sempre indispensáveis e tão fraternas quanto se imagina. Aliás, os natais dos últimos dois anos foram dos mais pacíficos. Faltou quórum para quebrar-o-pau por causa de insignificâncias e de rixas antigas ruminadas ad aeternum. Eu muito me envergonho, mas, tenho que lhes contar mais esta: certo dezembro, discutimos feio, eu e a minha irmã beata, por causa da posse de um piano velho, sem cauda e desafinado que ninguém sabia tocar. O problema não estava no piano. Nem no Menino Jesus, que acabara de comemorar mais um aniversário. O problema estava na gente. De novo mesmo, só a constatação de que a maior parte das pessoas não está compreendendo nada sobre o que essa peste está a ensinar.
Desde 2018, quando fomos contaminados por outro tipo de praga, desta feita, o fanatismo político da extrema direita radical, acabei por me afastar de pessoas com quem convivia regularmente. É obvio que me cancelaram também. A intolerância não escolhe lado. Com o acirramento do debate político nas redes, com muita gente dando voadeira no bom senso, o resultado não poderia ter sido outro senão discussões, brigas, atritos e muito aborrecimento. Mesmo aprisionado dentro das bolhas geradas pelos malditos algoritmos do Mark Zuckerberg, suponho que quase todas as pessoas minimamente conectadas passaram pelo mesmo fenômeno, pelo vale-tudo da verborragia bárbara e intolerância explícita. Até a happy hour foi afetada. Não consigo mais, por exemplo, tomar chope com quem defende tortura como política de estado e o armamento da sociedade até os dentes.
Ficamos viciados em tretas e em conectividade. Um escândalo. Participante deste cenário de delírio insólito, acabei desistindo de conversar e de conviver com determinadas pessoas que, até então, julgava que fossem amistosas. Elas até eram amigáveis, mas, de repente, despirocaram. Sofri alguns revezes. Passei por alguns perrengues morais. Vivi um episódio marcante, quando fui agredido com palavras terríveis, jamais ouvidas no tête-à-tête, não por um estranho, não por um daqueles famigerados robôs do escritório do ódio que funcionam nas sombras, mas, por um “amigo de longa data”. Pensei que a timeline tinha sido invadida por um hacker, mas, era ele mesmo escrevendo com raiva, como se o passado não existisse.
Nada como aproveitar o isolamento social ouvir boa música, ler uns livros, checar os extratos bancários, tocar uma punheta, acalmar os nervos e meditar a respeito da vida e de como as pessoas andam se rasgando. As relações humanas são por demais complexas, todo mundo já sabe disso. Engolimos sapos, mutuamente, numa antropofagia indigesta. Suportamos gente insuportável. Por interesse. Por misericórdia. Por covardia. Porque pertencem à família e família não se escolhe. Alguns princípios, entretanto, são para mim inegociáveis, de terminar amizade, se for o caso: a ciência, a democracia, a liberdade de expressão e a liberdade de ir-e-vir. Não tem sido tarefa fácil administrar a convivência com colegas, amigos e parentes cujas visões de mundo sejam tão antagônicas à minha.
Já compreendi que a vida é mesmo feita de momentos, de experiências e do cuidadoso exercício das relações interpessoais. A vivência é o legado que resta na memória e aquilo que, em última instância, vai fazer com que os sobreviventes pensem na gente de uma forma mais suave e mais delicada, depois que esticamos as canelas dentro de um caixote. Se bem que, passados cem anos — se muito — ninguém mais vai se lembrar que a gente sequer existiu, a não ser que tenhamos contribuído com a história por meio dalgum feito crucial para a humanidade, como descobrir a penicilina ou a pólvora.
Eu fico com a turma da penicilina. A vida é feita de escolhas. E de frases repetidas que caem sempre nos lugares comuns. Sou um homem simples, comuníssimo, podem acreditar. De especial mesmo, só a verdade. E ela nos libertará. Inclusive, daquele tipo de amizade que não soma e que vai morrendo, morrendo, morrendo aos poucos de causas naturais.