As canções do grupo Legião Urbana são um bom convite para meditar sobre a passagem do tempo. Mais precisamente, é um estímulo a pensar sobre o que foi aquele momento particular da abertura política do Brasil (virada para os anos 1980) e o novo sentimento dos jovens. Virou lugar comum chamar o período de década perdida, por conta da crise econômica. Mas foi a época de reviravoltas, com abandono de ideias antigas, sobretudo o romantismo revolucionário anterior, e a adesão a um novo individualismo.
No conjunto de músicas brasileiras marcantes, existe um lugar especial para “Eduardo e Mônica”. A história de um casal de adolescente chegando à vida adulta saiu no disco “Dois” (1986), que transformou o Legião Urbana e seu líder Renato Russo em símbolos de uma geração. A extensa letra é uma narrativa que se assemelha ao conto literário, criando personagens e situações. A influência declarada eram as canções de Bob Dylan. Há parentesco com Chico Buarque, outro criador de figuras humanas.
Os personagens de Renato Russo tomam forma, causando identificação e reconhecimento por parte do público. É óbvio pensar em “Eduardo e Mônica” como narrativa de indivíduos em sua juventude e em “Faroeste caboclo” como história coletiva do país. Prefiro ouvir/ler as duas músicas à maneira de alegorias. São fragmentos (partes) que apontam para um todo. Esse todo é a interpretação de que se passava na época e no país em fortes transformações políticas, sociais, culturais e comportamentais.
A força dessas alegorias resultou na transposição das histórias para as telas do cinema — o que os fãs sempre esperaram. Coube ao diretor René Sampaio a tarefa de adaptar “Faroeste Caboclo” (2013) e “Eduardo e Mônica” (2022). Os personagens ganham corpo e fisionomia concreta. A cidade de Brasília se multiplica em espaços transformados em imagens. Apela-se a uma memória afetiva dos brasilienses que tiveram no rock dos anos 1980 a sensação de contribuir para a história da cultura brasileira.
Novo sentimento do mundo
Se “Faroeste Caboclo” condensa os últimos suspiros do pensamento nacional-popular (o migrante nordestino que vai para a cidade grande), “Eduardo e Mônica” apresenta os novos sujeitos do Brasil no fim de século 20. No caso, são dois jovens que vivem a era de “expectativas decrescentes”, segundo Christopher Lasch. Ou nos termos de Renato Russo na canção “Índios”, também do disco “Dois”: “O futuro não é mais como era antigamente”. Nunca se falou tanto em crise como na década de 1980.
O final do regime militar (1964-1985) trouxe esperanças de mudança. No entanto, essa projeção de futuro já tinha pouco a ver com os sonhos rebeldes da geração dos anos 1960. O próprio rock brasileiro representou, de início, uma ruptura com a perspectiva da MPB. Não havia sons do Brasil no horizonte imediato dos fundadores do novo rock nacional. As referências estavam em Londres e Nova York. Só anos depois é que os roqueiros passaram a assimilar as sonoridades brasileiras em suas produções.
O personagem Mônica, criada por Renato Russo, é a alegoria do jovem da época que abandonou a ideia de luta revolucionária. No máximo, ela estaria próxima dos estudantes da Universidade de São Paulo (USP) que apareceram também no começo dos anos 1980 e contaram suas histórias no documentário “Libelu — Abaixo a Ditadura” (2020). Mônica é descrita por meio de suas afinidades culturais: “Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus/ Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud”.
Seguem versos que filiam a personagem de Renato Russo à herança da contracultura anterior: “Ela falava coisas sobre o Planalto Central/Também magia e meditação”. Mônica poderia ser uma figura do conto “Os sobreviventes”, de Caio Fernando Abreu, publicado no magistral livro “Morangos Mofados” (1982), que está completando 40 anos. Jovens que experimentavam de tudo um pouco, faziam terapia, recorriam às drogas e percebiam que o futuro já não era mais como antigamente.
“Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?”, diz o narrador criado por Caio Fernando Abreu, que emenda com uma frase antológica e premonitória para sintetizar como eram aqueles tempos. “A gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca.”
O eu mínimo
O traço contracultural aparecia em tintas mais fortes na versão original de “Eduardo e Mônica”. Havia em Brasília uma fita cassete gravada apenas com voz e violão de Renato Russo e que viralizou entre os admiradores do grupo. Diz a letra que está no disco póstumo “O Trovador Solitário”, lançado em 2008: “Eduardo e Mônica, então decidiram se casar/ Um casamento indiano em algum lugar perto do mar/ O mar tá muito longe um deles lembrou/ Vai ser aqui mesmo e assim ficou”.
A citação ao casamento indiano (fetiche da contracultura) desapareceu na faixa editada no disco “Dois”. Essa descolada Mônica vai se encontrar e fazer par com outra alegoria da época: o sujeito pragmático. Trata-se do “mínimo eu”, identificado por Christopher Lasch apenas em 1984. A figura pragmática levada ao extremo, despida de qualquer traço contracultural e preparada para a máquina do mundo-cão que será o fim de século. Mais do que o “viver”, o horizonte de expectativas passou a ser o “sobreviver”.
“A expectativa de que a ação política pudesse humanizar gradualmente a sociedade industrial deu lugar a uma determinação de sobreviver ao naufrágio geral ou, mais modestamente, de manter intacta a própria vida, face às crescentes pressões. O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é ‘soberano’ ou ‘narcisista’, mas simplesmente sitiado”, escreveu Lasch em 1984. Trata-se de algo que Caio Fernando e Renato haviam percebido antes, num país distante.
O personagem Eduardo jamais poderia estar na canção “Conexão amazônica”, também do Legião Urbana. A música descreve o sentimento de angústia no período: “Estou cansado de ouvir falar/Em Freud, Jung, Engels, Marx/Intrigas intelectuais/Rodando em mesa de bar”. Para a figura masculina de “Eduardo e Mônica”, resta o ambiente caseiro de assistir às telenovelas e jogar futebol de botão com o avô. Desenha-se a trilha do conformismo e conservadorismo que engole o Brasil nas décadas seguintes.
“Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer/E decidiu trabalhar (não!)/ E ela se formou no mesmo mês/Que ele passou no vestibular”, canta Renato Russo, com uma pitada de humor por meio de contrastes. No final das contas, o casal alegoriza o futuro brasileiro, rumo ao nada e à irrelevância coletiva: “Construíram uma casa há uns dois anos atrás/Mais ou menos quando os gêmeos vieram/Batalharam grana, seguraram legal/A barra mais pesada que tiveram”. Estamos no cenário de poucas ambições.
Em outro momento, Carlos Drummond de Andrade escreveu “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”. Leitor do poeta mineiro, Renato Russo tinha uma voz, um violão e os companheiros de Legião Urbana. No final da vida, cantou que a esperança estava dispersa em “Perfeição”. A doença com um nome curto, uma sigla, levou Renato, Cazuza e Caio Fernando. Mudando o título de um conto deste último, podemos dizer que “aqueles três” deram sentido ao novo sentimento brasileiro e do mundo nos 1980.