Se a natureza humana nunca valeu grande coisa para muitos, percepção que se agudiza ainda mais em tempos de situações extremas como as que temos vivido, tanto pior quando nos damos conta do quão perdidos estamos nesse mundo cada vez mais hostil, girando eternamente em meio a quase meio trilhão de outros corpos celestes. O homem desenvolve invenções revolucionárias — a exemplo do próprio cinema — empreende negócios mirabolantes e lucrativos, dedicou-se a pesquisar e descobrir novos medicamentos para males cujo desaguadouro era a morte certa e outros que vieram com a evolução mesma do gênero humano, mas continua a se sabotar e se autodestruir. A ciência, a medicina, a arquitetura e, claro, a arte seguem seu propósito de aperfeiçoar a outrora chamada raça humana, mas neste momento diversas nações travam guerras — muitas vezes contra seu próprio povo —, a distribuição de renda é um escândalo por si só e muita, mas muita gente sequer tem o que comer. Ou seja, o homem continua irredutível naquele que parece ser seu projeto maior: ser seu próprio lobo.
A desdita do homem sobre a Terra é tamanha que pode-se até chegar a uma espécie de ranking em que figuram suas agonias de acordo com a natureza de seu sofrimento. Os dramas da humanidade se dividem em duas categorias bastante prolíficas: os individuais e os coletivos — e, por mais desesperador que possa soar, estes se sobrepõem àqueles, afinal para que tenha o direito a sofrer, o ser humano precisa antes de mais nada respirar, comer, dormir, isto é, viver e garantir as condições necessárias a fim de seguir existindo. Analisando-se o tratamento que damos ao planeta, é perfeitamente razoável supor que não iremos muito mais longe. É como se a absoluta maioria dos indivíduos tivesse chegado à conclusão de que o fato do homo sapiens ser a espécie mais desenvolvida a habitar a esfera terrestre lhe faculta o direito de dispensar ao meio em que vive a mesmo desleixo com que administra sua própria casa, suas relações pessoais, seus sentimentos. Como no fundo somos todos um mesmo organismo interdependente, que se alimenta, se imuniza dos agressores microbiológicos e tenta se perpetuar valendo-se de um mecanismo em comum, o homem se adoece e também faz o ambiente enfermo.
O cinema sempre soube muito bem catalisar as graves questões da vida em sociedade, mas não para pretensiosamente oferecer soluções mágicas, fáceis e decerto erradas para problemas reais, complexos e que demandam toda a sorte de estudos e pesquisas das estrelas mais brilhantes da constelação científica. O que os filmes se propõem a fazer é usar imagens, belas, impactantes, persuasivas, no intuito de levar o espectador à reflexão, uma metodologia que funciona com muito mais eficácia e atinge muito mais gente e de maneira concomitante. A Bula entende que essa natureza imagética do cinema, que une beleza a pensamento, coração a cérebro, sentidos a razão, pode salvar o homem de si mesmo, proporcionando-lhe a oportunidade de rever conceitos arcaicos mediante a precisão de seus argumentos, sempre muito mais suaves que a realidade em si. O grande destaque da nossa lista, por óbvio, não poderia deixar de ser a comédia apocalíptica “Não Olhe para Cima” (2021), em que Adam McKay elabora o cenário mais patético que consegue para discorrer sobre temas como obscurantismo, negacionismo, o perigo das redes sociais, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21 antes que o homem consiga dar fim a tudo isso acabando com o próprio mundo. Já no suspense raiz “Ilha do Medo” (2010), Martin Scorsese apresenta o dilema de um investigador quanto a esclarecer um homicídio mimetizando ele mesmo a conduta de um assassino perverso. “Não Olhe para Cima”, “Ilha do Medo” e mais cinco títulos, todos na Netflix, falam dessas desesperanças tão humanas, tão nossas, em produções que são um verdadeiro banquete para os olhos, da mais recente para a lançada há mais tempo.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de “Não Olhe para Cima” suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.
Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos 40 anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios. O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que não demanda nem o mínimo retoque. No surpreendente final, a pergunta que resta nas cabeças e nas bocas é: que diabos ele foi fazer lá? Mas a conclusão é óbvia e vem de imediato. Valeu a pena.
“Um Amor Verdadeiro.” Este também poderia ser o nome do filme de Tom Hooper que conta a peculiar história do casal de pintores dinamarqueses Einar e Gerda Wegener. Ele, um artista cujo talento já era ampla e merecidamente reconhecido, faz de tudo para incentivar Gerda, que ainda tropeça na carreira. A fim de ganhar tempo e economizar uma ninharia qualquer que pode fazer falta, sugere a Einar que pose para ela, o que não constituiria problema algum, excetuando-se o fato de que Gerda retrata um tipo feminino. Ele, a princípio constrangido, acata a ideia, e logo começa a questionar sua vida até ali. A experiência se repete e Einar chega à conclusão de que estaria sendo impiedosamente perverso consigo mesmo se não encarasse a realidade que sua própria alma lhe revelava: ele é na verdade o que a ciência hoje denomina como uma mulher transexual, um homem que não se adequa à sua condição biológica, trocando em miúdos. Apesar de devastada por saber que, cedo ou tarde, vai perder o grande amor de sua vida, Gerda retribui todo o apoio que Einar sempre lhe devotara e aceita que o marido assuma publicamente a nova identidade. Quando ele, enfim, decide se submeter a uma polêmica — e arriscada — cirurgia de redesignação de gênero no hospital em que clínica o doutor Warnekros, na Alemanha, Gerda o acompanha. Na primeira etapa da intervenção tudo corre bem, mas o fim de Lili — o nome que Einar adota na vida que passa a ter —, é infausto. “A Garota Dinamarquesa” é o típico caso de filme de ator, em contraposição à pletora de filmes de autor que o cinema produz ano após ano. Eddie Redmayne talvez seja o maior representante da arte dramática de sua geração. Em todos os trabalhos a que se dedica, Redmayne deixa a marca de um artista que leva o personagem para a cama sem qualquer prurido de melindrar os brechtianos de plantão (profissional até o osso, como não mencionar a sua interpretação mediúnica do físico britânico Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”?). “A Garota Dinamarquesa” é lindo, emocionante, alentador, vibrante. Mérito quase integral de Eddie Redmayne.
Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.
Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.