Tão impactante quanto devastador, filme da Netflix é montanha-russa existencial Jojo Whilden / Netflix

Tão impactante quanto devastador, filme da Netflix é montanha-russa existencial

Sonhos podem se tornar obsessões, que por seu turno podem virar um grande problema. O casal Rachel e Richard enfrenta um momento delicado, precisamente por não saber que existem limites que devem ser respeitados mesmo quando se trata de alcançar o propósito mais nobre de suas vidas. Interpretados por Kathryn Hahn e Paul Giamatti, os protagonistas de “Mais Uma Chance” só pensam em como será poder ter, afinal, a sensação de serem pais, algo por que vêm batalhando há muito tempo. E tempo é um dos fatores que joga contra eles.

Na dramédia dirigida por Tamara Jenkins em 2018, Rachel e Richard já passaram dos quarenta — ela tem 41 anos; ele, 47 —, mas seguem firmes quanto a realizar a aspiração maior que os une, ter um filho. O tempo de que não dispõem mais é, sim, um grande adversário, mas na verdade há outras evidências atirando-lhes na cara o quão exaustiva pode ser essa jornada. Rachel já não é mais fértil e Richard tem um único testículo e ele está bloqueado, ou seja, é capaz de produzir esperma, mas não espermatozoides. Em outras palavras, o sonho está se rendendo à força de uma realidade cruel.

Este pode ser o pior pesadelo para duas pessoas que se amam e creem que a perpetuação desse amor passa necessariamente pela continuação física, e o que ela tem de estarrecedora na vida real tem de rica para um filme. No que toca a “Mais Uma Chance”, Hahn e Giamatti entendem perfeitamente a proposta de Jenkins de fazer a narrativa oscilar entre o farsesco, o histriônico e o dramático propriamente, nessa ordem, salientando dessa maneira o aspecto tragicômico do mote. Seguindo essa diretriz, é possível notar claramente que um filho para os dois talvez seja apenas um meio de mitigar os efeitos de seus desencontros, alguns cuja responsabilidade cabe aos dois, mas outros tantos em que um se mostrara mais egoísta, mais orgulhoso, mais comprometido com seus próprios desejos — e mesmo assim nem sempre tiveram êxito nessa empreitada, o que só faz com que os ressentimentos se avultem. Richard já foi um ator de teatro reconhecido, mas hoje, por alguma razão, tem uma pequena empresa que vende picles. Rachel é uma escritora cheia de impedimentos para concluir seu novo romance, e o tormento de não atingir seu objetivo quase paranoico de ser mãe só deixa o cenário ainda mais confuso. A vida é um amontoado de incertezas e ninguém garante que um filho, na quadra da vida em que se encontram, não seja a menos acertada das decisões, até porque eles já lançaram mão de todos os tratamentos. Seria mais sensato desistir, portanto. Seria mesmo?

A primeira parte de “Mais Uma Chance”, a farsesca, acompanha a peregrinação de Rachel e Richard por consultórios médicos, onde a personagem de Katherine Hahn faz as baterias de exames de praxe a fim de saber se está tudo em ordem com seu sistema reprodutor, e caso não esteja, se há algo a ser feito. O dr. Dordick, de Denis O’Hare, especialista em fertilidade, alerta sua paciente sobre o grande desafio que a maternidade pode se tornar, uma conversa que também envolve Richard, por óbvio, com a franqueza que geralmente caracteriza esses profissionais, mas os dois só apreendem o que pode lhes conferir alguma margem para continuarem pensando que nem tudo está perdido de todo. Richard e Rachel tem um relacionamento amigável com seus parentes. O irmão de Richard, Charlie, vivido por John Carroll Lynch, sua segunda esposa, Cynthia, personagem de Molly Shannon, e a filha de Cynthia, Sadie, interpretada por Kalyi Carter, lhes dão suporte emocional — e mesmo financeiro muitas vezes. A virada para o dramático do enredo se dá exatamente no instante em que Richard volta a pedir a Charlie que lhe empreste uma quantia para pagar um novo procedimento indicado pelo médico. Cynthia acaba tomando parte da conversa, atabalhoadamente, e sua insatisfação com a atitude do cunhado irrompe ao sugerir que ele os parasita. Richard aguenta a humilhação; uma a mais não há de fazer diferença. O espectador fica no meio do fogo cruzado e é espantosa a habilidade da diretora em conseguir manejar a trama a fim de fazer com que um personagem pareça mais racional que outro, apenas para embaralhar as cartas todas outra vez e tirar-lhe toda a razão no segmento posterior. Se antes Richard decerto poderia contar com a simpatia quase integral do público, depois da proposta que ele e Rachel fazem a Sadie, esse seu capital não está mais tão garantido assim, e Cynthia perde a aura de bruxa mesquinha de minutos atrás.

Singelas, as reviravoltas em “Mais Uma Chance” são potentes, ainda que muitas vezes previsíveis. O que importa mesmo aqui é se ater à maior quantidade de detalhes que se puder captar, todos fundamentais para que se entenda para onde vai a história. Tamara Jenkins tem um talento incomparável: registrar as agruras de uma classe média branca e perdida entre não renunciar a seus desejos e por conseguinte viver assombrada pela possibilidade de que nunca se concretizem ou levá-los às últimas consequências, malgrado não tenha nenhum indício de que ao fazê-lo será menos desgraçada. A tacanhez de Cynthia não é pior que a vaidade de Richard e Rachel, tão drenados sentimentalmente que não enxergam suas conquistas e elegem um sonho, impossível — ou ao menos inviável, dadas suas condições — como diploma de uma suposta felicidade. Sem nunca insinuar juízos de valor de nenhuma sorte, Jenkins compreende as fraquezas de seus protagonistas, dois imaturos que passaram a vida muito ocupados com suas ambições profissionais e agora, convencidos tardiamente de que falharam nessa tarefa em alguma medida, elegeram uma nova meta, no intuito de se provarem menos ineptos. Com o socorro ingênuo e desinteressado de Sadie, a idiota útil da vez.

A vida segue, com Sadie dando passos cada vez mais largos rumo ao sonho que, conscientemente, escolheu para si — e que, ao contrário de Rachel e Richard, parece que vai concretizar —, e os protagonistas, a seu modo, também vão tratar da própria vida, iniciando outro capítulo dessa saga neurastênica à procura de seu herdeiro. Dando um conselho valioso, “Mais Uma Chance” chega ao fim lembrando o óbvio: cada momento da vida é aquele momento, que nunca mais vai se repetir. Portanto, tenhamos a nobreza de reconhecer os ciclos da vida e, acima de tudo, respeitá-los. Tudo na vida tem prazos, a começar da própria biologia.


Filme: Mais Uma Chance
Direção: Tamara Jenkins
Ano: 2018
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.