Dor de cotovelo, dor de amor, dor de corno — com o perdão do palavrão —, falta de grana, doença na família, espinhela caída, mau olhado, quebranto… Quando vem aquela vibe ruim, o olho ficando rasinho, aquela vontade incontrolável de chorar, chore, chore mesmo, sem medo de ser ou parecer infeliz ou fraco. Se se importar muito com a opinião alheia, chore na cama quentinha, debaixo das cobertas, com as luzes todas apagadas, mas chore. Só as pedras não sofrem e só a bailarina daquela música não passa perrengue. A lista da Bula de hoje vai ajudar você a desabafar.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Depois de um casamento falido, em que era abusada pelo companheiro, só resta a Clara, fugir, sem nada, levando os dois filhos pequenos. A fim de não apavorar as crianças, ela finge que acabaram de entrar de férias, mas, sem ter nada o que esperar da vida, logo a necessidade os colhe. Os três, completamente perdidos na sociedade amoral, mesquinha e dominada por ególatras na maior cidade megalópole do mundo, passam por maus bocados, só resistindo graças à bondade de estranhos, que se ajudam movidos pelo que há de comum em suas histórias, enquanto tentam viver por mais um dia e não sucumbir aos rigores do inverno de Nova York, à espera de que dias melhores cheguem depressa.
A vida adulta é uma sucessão de dificuldades. Há que se formar numa boa faculdade, a fim de se ter um diploma que conte, o que não é garantia de se conseguir um bom emprego. Quando se começa a chegar lá, é necessário se mostrar antenado com as muitas transformações do mundo contemporâneo, sem se deixar engolir pelo mercado, cada vez mais competitivo. Por fim, em se afinando todas essas variáveis, cuidar das obrigações sociais: arranjar um bom parceiro, casar e ter filhos. Mas e quando os ponteiros do relógio começam a girar mais e mais depressa, o tempo avança e não acontece nada disso? Sanjay e Karina, dois perdedores, como o mundo os enxerga, não têm dinheiro o bastante para comprar a casa que querem. A solução parece óbvia: o casamento, ainda que nem de longe estejam apaixonados um pelo outro. Eles desafiam as circunstâncias e apostam nisso, sem saber que podem estar mudando suas vidas para sempre.
Ah, a vida, suas coincidências e suas incríveis reviravoltas… “Sementes Podres” é uma prova do talento do comediante iraniano-francês Kheiron, responsável pelo roteiro brilhante, pela excelente direção e, como se não bastasse, ainda mostra a força de sua verve artística em frente às câmeras como Wael, um trambiqueiro profissional que em companhia da mãe adotiva, Monique, a ex-prostituta da sempre vibrante Catherine Deneuve, aplica os mais engenhosos golpes a fim de chegar ao fim do mês de barriga cheia. É certo que dá a impressão de que vivem rodeados de ingênuos, de quem são eles os únicos dotados de alguma malícia na vizinhança, mas o filme não perde em nada por isso. Até porque Victor, um assistente social completamente habituado às pancadas da vida, atravessa o caminho deles. Monique e Victor se conhecem de outros carnavais e essa é uma das justificativas para que o cambalacho, ao menos dessa vez, se mostre um retumbante fracasso. Para que as coisas não terminem ainda pior do que Wael imagina, o malandro aceita a proposta de Victor e vai auxiliá-lo com os adolescentes problemáticos que assiste, a princípio por um único dia. Wael realiza um trabalho tão excepcional que vai ficando, enquanto Monique também recrutada, trabalha como secretária do ex-parceiro de farras. Os dois, de um jeito meio torto, conquistam a confiança de Victor. Wael muda a vida dos garotos, muda sua própria vida, ao passo que Monique não fica atrás, ainda que tenha uma ou outra recaída de quando em quando — e arraste junto o filho. Ao se valer do argumento de que a verdade nem sempre precisa ser dita, “Sementes Podres” é um filme inspirador se tomado na sua exata medida. Depende do modo como se queira interpretá-lo.
“A Escalada” conta a história de um jovem da periferia de Paris decidido a arranjar um patrocinador e subir o Monte Evereste apenas motivado pela paixão: sua crush dos tempos de garoto está disposta a lhe dar uma chance se ele conseguir vencer o monte mais alto — e certamente mais perigoso — do mundo. Será que o amor compensa a falta de experiência e a imaturidade dele? Ou seria a ânsia por ser amado que lhe faltava para dar à sua vida um sentido maior? Permanecer apenas existindo em detrimento da vida é que não parece uma opção razoável e ele se entrega ao desafio, visando à maior recompensa que alguém pode receber.
Fustigada por um câncer que aos poucos consome sua vida, Deborah Hall tem fé de que vai se curar. Casada com Ron, famoso negociante de obras de arte, ela deseja que o marido se torne amigo de Denver, um mendigo violento, cujo passado remonta a episódios de abuso e exploração. Como nunca deixou de amar a mulher e quer conservar seu casamento, Ron tenta se aproximar de Denver. Contudo, as ilusões românticas de Deborah podem transtornar sua vida.
A tragédia que colhe Ben muda completamente o curso de sua vida, e ele resolve abandonar a carreira de escritor para se dedicar a cuidar de pessoas com necessidades especiais. Trevor, 18 anos, seu primeiro cliente, é portador de distrofia muscular, o que não o impede de desancar Ben quando tem vontade. Trevor convida o novo amigo a fazer uma viagem, e os dois visitam os lugares que o garoto só conhecia pela televisão. Na estrada, se juntam a eles Dot e Peaches, e a aventura se torna cada vez mais saborosa à medida que redescobrem a vida a partir da importância dos amigos.
Um homem de coragem, que não se verga aos desmandos dos poderosos, muito menos quando sabe que está certo. Este é o neuropatologista forense Bennet Omalu. Completamente devotado à carreira e a seus estudos, ao atender um jogador de futebol americano em ascensão, o doutor Omalu identifica no atleta um distúrbio neurológico grave. Investiga melhor o caso e chega à conclusão de que o evento se dá em frequência muito maior do que se supunha, justamente por causa da natureza violenta do esporte. Ao apresentar sua descoberta para a imprensa e determinado a combater a expediente agressivo nos campos, Bennet Omalu passa a ser alvo da NFL, a influente associação nacional de futebol americano.
Bônus
A fantasia épico-dramática dos diretores Liang Xuan e Chun Zhang impressiona, tanto mais por se tratar de gente nova no ramo. A qualidade técnica, a forca da mensagem, a precisão poética do roteiro, tudo conspira para que “Big Fish e Begônia” tome o espectador de assalto e fique por ali, cavando um espacinho no coração do público. O filme começou a ser pensado 12 anos antes do lançamento, e cada minuto parece ter sido crucial. O que se vê na tela é a realização de um sonho, e aqui não vai nenhuma metáfora gasta. Liang Xuan vira enquanto dormia a história de um peixe que ia crescendo até não caber mais em lugar algum se não o mar. O parceiro entendera a mensagem, que poderia dar em enredo para um bom filme sobre liberdade, escolhas, amadurecimento. Em 2004, começaram a trabalhar, primeiro sob a forma de curta-metragem. Chun é uma espécie de criatura mitológica, habitante de um mundo paralelo logo abaixo da superfície do oceano. O céu de Chun é a parte mais abissal do mar. Ao completar 16 anos, é submetida ao rito de passagem para a vida adulta de seu povo. Sob a forma de golfinho vermelho, é despachada para observar os homens — e esse é o verbo adequado. Não é permitida nenhuma aproximação, a fim de que se preservem as duas espécies. Mesmo considerando a regra temerária demais, Chun cumpre as ordens e se deslumbra com o que pode vivenciar. Já no caminho de volta para o seu mundo, fica presa numa rede de pesca. Quem a salva é o menino que havia conhecido ao chegar, que corajosamente se lança ao mar a fim de salvá-la. Chun se desprende da rede, mas o garoto morre. Num terrível drama de consciência, ela o resgata, e vai atrás do guardião de almas, um ser meio demoníaco com quem negocia a ressurreição dele, sob a condição de que lhe reserve metade de sua vida. Transformado num peixe, chamado de Kun pela nova amiga, será assistido pela menina até que possa retomar sua vida. Como o guardião lhe advertira, a presença de Kun num mundo que não é o dele traz complicações, como o desequilíbrio no ecossistema. O intruso passa por situações vexatórias e até repugnantes. A situação torna-se ainda mais delicada quando Chun e Qiu, o amigo que nutre uma paixão secreta por ela, sabem que Kun, na verdade, fora renegado por seu povo, que o queria fora da comunidade, e agora que ele começa a se recuperar, não o quer de volta. À luz da filosofia oriental, mais precisamente o taoísmo, no caso do filme, a história serviria como uma espécie de alerta sobre como o homem será encarado no além-vida, ou seja, de acordo com seu comportamento no mundo da matéria. A desdita de Kun talvez fosse mesmo o que lhe reservara o mundo divino, e Chun fora imprudente ao se envolver. Desde o princípio dos tempos, o homem sempre teve a possibilidade de fazer a escolha que lhe conviesse, desde que fosse capaz de arcar com as consequências de seus atos. A aura de fantasia aliada ao místico é um dos grandes momentos de “Big Fish e Begônia”, um filme que ensina, ainda que passe a impressão, à primeira vista, de ser só mais uma das muitas animações de algum país distante.