Por melhor que um filme seja, é perfeitamente compreensível que arregimente uma legião — ainda que envergonhada — de detratores. Uma história pode ser interpretada sob muitos pontos de vista, e aspectos que passariam ao largo para uns tornam-se uma questão de vida ou morte para outros. “Rush — No Limite da Emoção” experimenta essa condição de maneira flagrante. Há quem simplesmente deteste qualquer enredo que discorra sobre competições, e tanto pior se os adversários estiverem a bordo de carros tão apertados quanto ágeis, dando voltas e voltas num circuito relativamente pequeno a fim de saber se ao longo de duas horas acontece algum imprevisto e se dá a reviravolta que eterniza um deles campeão, enquanto o outro amarga momentos de opróbrio e humilhações que parecem já estar incluídas no pacote. Dessa perspectiva, fica um pouco mais difícil se entender a resistência, já que o cinema, quase sempre, também observa a mesma dinâmica; em geral, filmes vêm a ser a disputa, de vida ou morte, muitas vezes, entre dois indivíduos até que reste apenas um. Mas gosto é gosto.
Tenho duas confissões a fazer, e começo pela mais grave. Nunca fui muito fã de Fórmula 1 — e sendo ainda mais franco, de esporte nenhum. Meu espírito sempre foi indócil demais para que eu me submetesse a uma tortura de duas horas diante da televisão a fim de saber quem levaria o caneco (e aquele banho de champanhe, que alude a um batismo na igreja do novo-riquismo ou da cafonice pura e simples), no caso das provas da categoria mais importante do automobilismo mundial — quanto ao futebol, para mim é infinitamente mais prazeroso jogar que torcer, ainda que nunca tenha sido nenhum Pelé, no máximo um Zico —, que perderam a pouca graça que poderiam ter quando da morte estúpida de Ayrton Senna (1960-1994), o brasileiro que mais se destacou nas pistas e um dos melhores pilotos do mundo, de todos os tempos, episódio em que “Rush” chega a tocar, malgrado sem muito interesse. Minha segunda confidência (ou inconfidência) diz respeito ao filme em si. Pensei, sinceramente, que o longa de Ron Howard, de 2013, seria uma sucessão interminável de clichês, distribuída em gradações variadas de tédio. Felizmente, derrapei feio.
A história por trás da rixa quase homicida entre James Hunt (1947-1993) e Niki Lauda (1949-2019) começa bastante previsível, sim, mas bastam poucos minutos para que Howard diga o que quer com “Rush”. O relacionamento abusivo do britânico — muito mais para um astro do rock que para um esportista num meio em que disciplina poderia fazer a diferença entre acabar uma corrida bem ou com algumas fraturas (se não coisa pior) — para com o austríaco, que aos poucos foi se livrando da fleuma e respondendo na mesma moeda, com direito a lições de moral plenas de ironia fina, palavrões e dedo do meio esticado, decerto deu outro colorido aos enfrentamentos pelo título mundial de 1976. Malgrado não saiba tanto sobre eles, o espectador logo é instado a tomar parte na contenda, e é irresistível manifestar simpatia ora por um, ora por outro. Duas personalidades fascinantes, cada qual vibrando num diapasão diametralmente oposto, é quase óbvio que há de chegar o momento em que se perceberiam frágeis, miquinhos (ou ratinhos) amestrados no circo de horrores que era o automobilismo de então, prontos a se sacrificar correndo a mais de trezentos quilômetros por hora em bólidos que, a despeito da tecnologia rudimentar da época, não primavam pela segurança de quem se atrevesse a dirigi-los sob aquelas circunstâncias, enquanto os leões perdiam os dentes, mas não o apetite. A certa quadra de “Rush”, Hunt diz que seu carro “é apenas um pequeno caixão, cercado por combustível de alta octanagem por toda parte. Para todos os efeitos, é uma bomba sobre rodas”. E, lamentavelmente, estava certo.
Ron Howard é hábil em dirigir filmes que esmiúçam os altos e baixos do gênero humano tomando por paralelo a engrenagem misteriosa de um automóvel, como já havia feito em “Grand Theft Auto” (1977). Há uma aura de segredo que se descortina quando o homem, animal gregário por natureza, reúne-se a outros indivíduos de sua espécie a fim de alcançar um resultado positivo em comum, mesmo que sem nenhum impacto direto sobre sua vida prática. “Rush” bebe diretamente dessa fonte, ao compreender a Fórmula 1 como uma válvula de escape, um exercício catártico em que milhões de pessoas tornam-se aptas a atingir instantes fugazes de felicidade, mas é a exposição destemida dos problemas intestinos do esporte que fazem “Rush” ultrapassar a marca de peça de entretenimento e chegar ao posto de obra-prima. Foram necessárias quase duas décadas para que os cartolas da FIA, a Federação Internacional de Automobilismo, se convencessem de que adrenalina e morte estavam se misturando com muita displicência. Em 1° de agosto de 1976, Niki Lauda sofrera um acidente grave durante o Grande Prêmio da Alemanha, em Nürburgring, que não o matou por pouco. Lauda teve de se submeter a um tratamento doloroso para drenar a água do pulmão — uma vez que a pele, completamente esturricada pelas queimaduras, não dava conta da transpiração. Contrariando todas as expectativas, o austríaco voltaria ao páreo seis semanas depois, e Hunt já o aguardava, ansioso e num outro status da carreira. Mesmo preocupado com a recuperação de seu principal contendor, o britânico não se furtou a ocupar o vácuo deixado por Lauda, e foi o campeão mundial daquele ano.
Bromance de sinal trocado em que vai seus protagonistas vão se ajustando à medida que percebem que suas semelhanças contam mais que as características que os separam, “Rush” é um filme em que a composição dos personagens é determinante quanto a fazer a história deslanchar ou não. O roteiro de Peter Morgan valoriza a rivalidade entre Hunt e Lauda, mas sabe exatamente em que momento deve brecar e permitir que os pilotos desçam do Olimpo e mostrem sua face humana. Chris Hemsworth usa sua beleza a fim de ressaltar a intrepidez do britânico, ao passo que Daniel Brühl carrega nas tintas da frieza de Lauda, que também sabe amenizar nas horas em que a trama pede mais calor. Howard e Morgan partem de um argumento à primeira vista pueril no intuito de mostrar a guinada existencial de Hunt e Lauda, adversários que se viciaram em tripudiar um do outro, mas conscientes de que ambos fazem o que fazem para ganhar a vida da forma mais digna que conseguem, aceitando a evidência de ter de topar com a morte numa curva mais fechada qualquer. Dois homens comuns, que precisam dar vazão a seus sentimentos feito todo mundo, e nesse aspecto, a história perde um pouco de sua substância, ainda que tenha lances capazes de provocar encantamento. O casamento de Hunt com a modelo Suzy Miller, de Olivia Wilde, impulsivo, como tudo nele, é engolido pela força do mote central, e mesmo pelo verdadeiro conto de fadas que constitui o encontro de Lauda e Marlene, em que Alexandra Maria Lara consegue deixar claro que a paixão de sua personagem pelo piloto é muito mais cerebral que movida pelo sentimento, e é precisamente por isso que Lauda fica tão interessado por ela. A cena em que o carro do austríaco quebra, não durante um torneio, mas numa estrada no interior da Itália, quando se conhecem, é uma das passagens mais divertidamente poéticas do cinema contemporâneo, uma referência confessa ao gênio de Frank Capra (1897-1991), que dispôs Claudete Colbert e Clark Gable em situação parecida em Aconteceu Naquela Noite (1934).
É bom se deixar envolver pela surpresa de um filme. Antes a louvação da boçalidade humana — e, mais precisamente, da truculência masculina —, “Rush — No Limite da Emoção” dá um cavalo de pau semântico e se revela um libelo ao amor e à dignidade, defendendo que ninguém se preste a morrer para poder ter seu brilho apreciado, como as estrelas. James Hunt não tinha tanto problema com isso, bebeu a vida de um gole só e morreu jovem, em 1993, aos 45 anos, de infarto. Niki Lauda chegou a ficar velho, mas também saiu de cena meio cedo, em 2019, devido a problemas pulmonares, ainda em decorrência do acidente de mais de quarenta anos antes.
Filme: Rush — No Limite da Emoção
Diretor: Ron Howard
Ano: 2013
Gênero: Drama/Ação
Nota: 10/10