Quebra-cabeça psicológico e viciante da Netflix vai fazer você acender todas as luzes enquanto assiste

Quebra-cabeça psicológico e viciante da Netflix vai fazer você acender todas as luzes enquanto assiste

“Arquivo 81” é uma sucessão de mistérios. Conchavos, jogos de poder, paranoia, fenômenos sobrenaturais, rituais heterodoxos e afins tomam a cena ao longo de oito episódios de 50 minutos em média que aludem ao melhor de Alfred Hitchcock (1899-1980) e Roman Polanski com uma pitada de Brian de Palma. Em mais um trabalho, cuja estreia se deu em 14 de janeiro, os criadores James Wan e Rebecca Sonnenshine apresentam um suspense inteligente, como se o espectador fosse tragado para o centro de um enredo que ancora seu realismo mágico numa história que evoca imagens fortemente contemporâneas.

Na pele de Daniel Turner, o protagonista, Mamoudou Athie dá forma a mais uma interpretação sensível, em que o ponto alto do personagem, sua dubiedade, vai se revelando no momento exato. Dan é um arquivista profissional que se dedica a garimpar VHS e cassetes antigos, escarafunchando esses dispositivos atrás de imagens e sons inusitados. Sua obsessão é tanta que ele vasculha todas as feirinhas da cidade em busca de filmes raros, tragados pelas brumas do tempo, e quanto mais avariados, mais empolgado ele fica. Virgil, o milionário vivido por Martin Donovan, o contrata por cem mil dólares a fim de que resgate fitas de videocassete quase inteiramente comprometidas devido a um incêndio no Visser, edifício de apartamentos populares em Nova York, nos anos 1990. Esse acervo está sendo mantido sob estrito sigilo em algum lugar nas Montanhas Catskills, a duas horas de Nova York, o que leva Dan a ter de se mudar para lá, onde fica de todo isolado no alojamento da companhia de Virgil, o que lhe permite  explorar a casa, medonha, enquanto tenta descobrir a razão que motivou o ricaço a requisitar seus serviços.

No momento em que se depara com a gravação de Melody Pendras, uma estudante de sociologia que se mudara para o Visser à procura de sua mãe biológica, desaparecida há anos e vista lá pela última vez, tem início a narrativa paralela que passa a permear “Arquivo 81”. O prédio da personagem de Dina Shihabi parece uma reconstrução de ambientes já levados à cena em “Festim Diabólico” (1948), de Hitchcock, e “Repulsa ao Sexo” (1965), dirigido por Polanski. Eventos pouco usuais, como ruídos mórbidos no meio da noite, portas que se trancam sozinhas e manifestações hiperfísicas no porão. Melody tenta conhecer os demais inquilinos do Visser, aproveitando para desvendar seus mistérios, e Dan observa, separado do que acontecera por quase três décadas. Mas Dan é muito mais que apenas um observador passivo.

Fundindo essas duas realidades — a que se vê e a que se insinua —, “Arquivo 81” joga com a sensação, autêntica ou ilusória, de que o mal se esconde sob a forma de fitas obsoletas, capazes de aprisionar criaturas de outras dimensões, que se fazem notar quando desejam. O terror tem o condão de esconder o óbvio valendo-se de expedientes mais óbvios ainda e os admiradores do gênero se encantam com isso. O público se esmera em tentar achar paralelos entre o que se assiste em filmes mais recentes e os clássicos, e a brincadeira fica completa com a inserção perspicaz desses elementos concretos, como a alusão ao edifício Visser. É assim que nascem as lendas urbanas, que por seu turno só conseguem se estabelecer graças a sua aura de verdade. A impressão de se estar à cata de segredos que poucos percebem é o trunfo de “Arquivo 81”. Próximo ao fim da temporada, a narrativa torna-se ligeiramente mais acelerada, visando a dar alguma resposta à cornucópia de indagações que restam por serem esclarecidas, o que faz arrefecer o efeito do que se apresentara até então. Deslize menor, tendo em perspectiva que a história permanece quente mesmo que não se possa assistir tudo de uma enfiada só.

“Arquivo 81” fica num eterno balanço entre o passado e o presente, fazendo com que a audiência se perca entre o que se desenrola entre o intervalo de um e outro tempo dramático. As citações a Andrei Tarkovsky (1932-1986) não são à toa; o amálgama de sequências mais emocionais com passagens em que sobressai a dureza da vida de Dan são responsáveis por momentos de beleza incomparável, nem sempre tão à mostra em filmes dessa natureza. O texto é organicamente ousado, nunca se flagra alguma manipulação da história a fim de obter reações subitamente mais impressionadas do espectador, e consegue orbitar as esferas negras do roteiro original de Paul Harris Boardman, mormente quando assume a insânia do argumento central e se furta a responder a todas as perguntas.

Isso posto, “Arquivo 81” tem tudo para ir longe. As performances de Athie e Shihabi, surpreendentes em determinadas cenas, coroam um trabalho de pesquisa irrepreensível, compondo um programa que instiga, e não só reúne gente disposta a passar bons momentos junta. Às vezes, mais que ousar, é necessário ousar ousar.


Série: Arquivo 81
Direção: James Wan, Rebecca Sonnenshine e Paul Harris Boardman
Ano: 2022
Gênero: Suspense/Terror
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.