Subestimado, novo filme da Netflix sobre um dos maiores gângsters da história mostra que a vida ensina surrando

Subestimado, novo filme da Netflix sobre um dos maiores gângsters da história mostra que a vida ensina surrando

“Como me Apaixonei por um Gângster” tem deixado um rastro de polêmica desde seu lançamento, em 5 de janeiro de 2022. O filme do diretor polonês Maciej Kawulski desagradou os críticos, que não veem aqui o brilho de Kawulski na produção que antecede o filme de 2022, com o mesmo mote e cuja estreia se deu em 2019; não satisfez a última mulher do personagem retratado, cujo depoimento, na boca da atriz Krystyna Janda, conduz o enredo — ela chegou a sugerir um boicote ao longa — e por último, mas não menos importante, enfureceu o público, que não entende a necessidade de se romantizar a vida de bandidos, sobretudo na Polônia. Qual o motivo para tanto ódio?

Quem diz que Nikodem Skotarczak, interpretado por Tomasz Włosok, está a léguas do real pode reivindicar sua medida de razão. Kawulski tentou desfazer o mal-entendido, alegando, numa tela negra antes da história ter início, que o que se vai assistir é “inspirado” na vida de Skotarczak. Personagens, eventos e diálogos podem ser baseados em eventos e pessoas que fizeram parte da trama que se conta, mas há que se lembrar a diferença, elucidativa, entre documentário e história verídica, como também há que se pontuar que alguns personagens e acontecimentos ocorridos com Nikodem Skotarczak foram abreviados, estendidos ou mesmo limados do corte final, numa decisão de viés puramente artístico dos realizadores.  Destarte, a história é o que se propôs a ser desde o começo, uma história, e não um ensaio biográfico ou documental.

Ninguém prometeu verdade absoluta em “Como me Apaixonei por um Gângster”, e no entanto, uma de suas maiores qualidades é o realismo. Os filmes de gângsteres costumam ser os mais populares do cinema, justamente devido a essa estranha identificação entre espectador e protagonista, criminosos muitas vezes perversos que concentram fatos e visão artística de uma forma que diretor nenhum, por mais genial que fosse, se atreveria a imaginar. Embora a discussão acerca de se glamourizar a vida de tipos marginais — expediente francamente abominado pela sociedade polonesa, mesmo em trabalhos de caráter reiteradamente artístico —, que logo são tomados sob a condição de celebridades ou, pior ainda, glorificados, toque num ponto sensível e de fato grave, Kawulski não pode ser crucificado: ele só se comporta como quase todo cineasta deslumbrado com sua história e o resultado de seu empenho costumam fazer. “Como me Apaixonei por um Gângster” é entretenimento, e só. O filme é, portanto, um deleite para os olhos do espectador, e tal deleite teria sido inviável se Kawulski tivesse se decidido a transferir para seu filme a encarnação mais fidedigna do gângster ao que realmente foi.

Tal como está no filme, a história de Kawulski não foi totalmente mexida. Muito do que se encontra no roteiro de Kawulski e Krzysztof Gureczny aconteceu mesmo. Roubos de carro; o plano arrojado que permitiu a Skotarczak escapar da prisão; as figuras com quem se relaciona — logo se nota que o gângster teve muitos mais amigos que desafetos —; “atividades desportivas” relacionadas ao Lechia, time de futebol de Gdański que passa a patrocinar com vistas a lavar o dinheiro do contrabando de automóveis da Polônia para a Alemanha Oriental, em pleno regime comunista, todas essas são passagens verdadeiras da trajetória de Nikoś pelo submundo do crime organizado do Leste Europeu, mas há detalhes apresentados por Kawulski que fazem toda a diferença, boa parte deles no que diz respeito à atitude de certos personagens diante da vida. O próprio Nikos era, aparentemente, muito menos dado a trabalhar, mas o diretor faz com que se sinta que o personagem de Włosok não subira tanto por obra do acaso. O que se sabe sobre ele vem à superfície graças às memórias borradas, pelo próprio tempo ou intencionalmente, de quem privou de sua intimidade, assim como à pesquisa, cuja fonte principal se constituiu em outras realizações audiovisuais e publicações.

Com certeza, o que se conhece sobre Nikodem Skotarczak é que ele nasceu em 29 de junho de 1954, em Pruszcz Gdański, na voivódia (estado) da Pomerânia. Aluno medíocre, decidiu rápido privilegiar o trabalho, e aos dezenove anos, consegue um emprego como leão-de-chácara na boate Lucynka, indo para a Maxim depois. A carreira como delinquente teve início a essa mesma época, quando passou a roubar carros com o irmão, negociando em moeda estrangeira, e a fazer pequenos favores a Michał “Patrono”, todo-poderoso da máfia da cidade. Aos poucos, Nikoś vai expandindo seus conhecimentos sobre fraude monetária para a Hungria, onde amplia a rede de contatos com outros criminosos, com quem principia a trocar, além dos carros, antiguidades de valor, como relógios. Para se provar um legítimo fora da lei, dá ordem para que se mate o homem com quem tivera uma desavença em Budapeste, mas a determinação não foi cumprida.

Ao longo de mais de três horas, depreende-se de “Como me Apaixonei por um Gângster” a tentativa de Maciej Kawulski de edulcorar a figura de Nikoś, como se fosse apenas um homem meio perdido que vira no crime a oportunidade de se encontrar. O público polonês está certo ao sentir ultrajado com a abordagem amaciada de Kawulski, que vende seu protagonista como um bom ladrão. Realmente, não se pode negar que Nikoś fosse muito menos violento que seus homólogos na máfia, mas a história do Rei da Tri-Cidade — núcleo urbano da Polônia, localizado na Pomerânia, que abrange a área urbana dos municípios de Gdansk, Gdynia e Sopot —, malandro astuto, embora não parecesse, é pautada por uma resolução consciente pela vida infralegal, por mais rígida que tenha sido sua criação. Criminosos disputam a predileção do espectador numa concorrência desleal com outros tipos. Se barbarizam, são louvados por sua bestialidade; se, pelo contrário, lançam mão de seu soft power, seu poder de persuasão pelo diálogo, pelo carisma, pelo charme, são alçados à paradoxal condição de heróis, confirmando a máxima de Brecht. Nikodem Skotarczak morreu em 24 de abril de 1998, aos 34 anos, fuzilado por homens mascarados, decerto contratados por seus pouquíssimos rivais. Seu corpo só foi enterrado numa cerimônia católica após a intervenção do arcebispo de Gdański, Tadeusz Gocłowski.


Filme: Como Me Apaixonei Por um Gângster
Diretor: Maciej Kawulski
Ano: 2022
Gênero:
Drama
Nota:
8/10