O segredo da vida é não ficar pensando tanto na morte

O segredo da vida é não ficar pensando tanto na morte

Demóstenes morreu de orgasmo; Péricles, de engasgo. Lázaro ressuscitou um morto com as tais pílulas azulzinhas. Desde então, a cunhada nunca mais deixou de gritar “Ai, meu Jesus! Ai, meu Jesus! Ai, meu Jesus!”. Uma rocha enorme desprendeu-se do nada e caiu com tudo sobre o peso da culpa que Temístocles carregava. Vanda tomou um fora do namorado terrivelmente evangélico e se atirou da borda antártica da Terra plana. O plano era sair para comprar cigarros e nunca mais voltar; fato é que Juvêncio realmente não retornou mais ao domicílio: foi atingido nos cílios por um piano de calda que saltou do alto de uma compota de doces de uma poetisa da casa velha da ponte que acabara de se mudar para o oitavo andar. Desvario? Vocês ainda não viram nada. Papai não me reconheceu no seu leito de morte. Aquele tipo de alucinação que dói profundo na gente. Pelo andar da carruagem — e deste texto — o inferno deve andar cheio escritores medíocres. Sentindo-se mais vazio do que a oficina do diabo, Gomes enfiou o fura-bolo no reto e se rasgou ao meio numa parábola perfeita. Ando meio desligado. E imperfeito. Ninguém em sã consciência iria lamentar a morte de um ser humano canalha, a não ser que trabalhasse como coveiro e ainda por cima tivesse de desperdiçar o próprio tempo para entregar o corpo de um desgraçado aos vermes. Já cansei de enterrar as melhores das boas intenções que morreram ainda no nascedouro. Berço de ouro é o cacete. Trabalhei duro para me tornar um homem frustrado. Não nasci para essa coisa de morrer de amores. Tia Zelva, por exemplo — coitadinha, deusatenha — teve um choque anafilático após o contato da sua glote com os corpúsculos espermáticos do noivo sifilítico. É duro tergiversar sobre a agradável sonoridade das palavras proparoxítonas, mas, o cancro duro é tão silencioso quanto uma traição bem engendrada. A humanidade nunca padeceu com tantos micróbios, com tanta incompreensão e com tanta falta de concordância verbal. De graça, até injeção de ânimo na testa. Jair Messias testou positivo para o fanatismo político e partiu prematuramente, antes sequer de ter tido tempo para ir tomar no olho do cu. Minha boca pode até estar suja, mas, não como os homens que sapateiam sobre o carpete azul do parlamento. Conceitualmente, o amor é lindo, mas, dá muito trabalho. Alice fazia faxinas num escritório de ódio e acabou se apaixonando por um homem baixo cujo codinome era Carluxo. Morreu de desgosto, odiada, como era de praxe. Luxo mesmo é viver de flauta e de poesia ou da venda de miçangas artesanais confeccionadas sob o efeito não medicinal da cannabis para turistas de outros mundos, mundos, vastos mundos. Se eu me chamasse Raimundo teria rompido relações com a minha mãe ainda na primeira infância. Ninguém é santo. Mesmo assim, sou devoto de meu pai. Deusotenha para sempre na minha memória, ainda que a minha mente enlouqueça. Uma Kombi carregada com rodelas de queijo meia cura capotou na esquina da Crustáceo de Souza com a Desalentados do Anhangabaú. Agraciado com uma baita visão de futuro, o cego da piada infame desandou logo a gritar “Bom dia, mulherada! Bom dia, mulherada!”, ao que foi celeremente contratado por um ginecologista que fazia malabares com óvulos confitados num semáforo para defender o trampo desde que perdera o olfato por causa da maldita peste de vírus chinês. Um médico que não sente odores não é lá grande coisa. “A vida sem você não tem graxa”, disse o irresistível mecânico Isaías para uma sósia formidável da Valesca Poposuda — só que mais pobre e menos vulgar — antes de escrever lorotas para um livro sagrado que todo mundo lia, lia, mas, não compreendia e, muito menos, aplicava na vida cotidiana. O segredo é não ficar pensando na morte. Essa porcaria não possui relógio e não merece tamanho cartaz; não é como as modelos voluptuosas de um calendário Pirelli dependurado na parede suja de uma oficina. Acho que Roberto Carlos não tem perna mecânica. Acho que ovo não tem cabelo. Estou pensando tantas coisas ao mesmo tempo que o meu cérebro fede à borracha de pneu queimada. Damares masturbou-se com gel lubrificante de cloroquina e o prazer foi tão grande, mas, tão grande, que ela cogitou sinceramente passar a negar o romance e a ciência. Estou de saco cheio com tamanha lucidez. Em matéria de relacionamentos, considero-me bastante imaturo. Não foi simulação. Ebinho não tinha caído de maduro na zona do agrião. Foi mesmo um infarto fascinante do miocárdio. Acabamos fulminados por trocadilhos infames e por disparos de clamorosa ignorância. Ninguém sabia reanimar um ser vivo, quem dirá, um morto. Não estamos preparados para nada, praticamente nada. Nados borboletas. Malhas finas. Más notícias. Bebês surpresas. Mortes súbitas. Subitamente, me pego cantando sem mais nem por quê. Por um instante pensei que eu bem que podia ser o Chico Buarque. Mas, não; não sou e não era. E não foi por engano. Eu estava feliz, muito feliz, mais feliz e bem-humorado do que a média de felicidade sentida ao longo daqueles dias tão tristes. Não poderia perder a oportunidade de escrever a respeito disso. Eu tinha visto a cara da morte e ela parecia uma bunda, só que murcha e sem nenhum glamour.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.