Em primeiro lugar, o filme é isso: um tesão. Um tesão aos 15 anos de idade. Ou melhor, carrega os elementos que constituem os néctares do tesão — pelo menos para mim. Opressão e culpa, um sistema religioso corrompido e sadomasoquista que lucra alto com o sobrenatural e o misticismo, a igreja nos anos da peste negra, noviças na flor da idade e uma personagem literalmente divina: Benedetta. A freira, incorporada por Virginie Efira (no esplendor dos seus 44 anos interpreta uma garota de 23) tinha visões pornográficas com Jesus Cristo e mantinha conjunções carnais não somente com o crucificado, mas com Bartolomea, freirinha colega de claustro, e com todos os santos e demônios criados por ela mesma e pela igreja carnal, católica apostólica e romana que, há séculos, vem fornecendo subsídios e farto material para a depravação do seu rebanho, graças a Deus.
Em meio a pesadelos pornográficos, Benedetta amanhece crivada de estigmas, digamos, meio suspeitos, além de alguns poderes paranormais que, hoje, qualquer criança poderia adquirir numa caixinha de mágica na 25 de março. Prato cheio para os gerentes da igreja local, que sonham em instalar uma nova Assis na esquecida e distante Pescia, na Toscana. Eis a senha. Ou a chave dramática que é disparada quando Benedetta, no auge de suas alucinações e simultaneamente quando vira Abadessa do convento, se apaixona por Bartolomea, companheira de claustro. A madre superiora que teve seu cargo — e as dependências de suas confortáveis instalações, com direito a cama king-size — subtraídos por uma manobra canastrona de Benedetta, resolve investigar os estigmas, e o afeto suspeito que Benedetta nutre por Bartolomea, enfim, a ex-madre vai ao desforro. E através de um buraco na parede testemunha o tórrido romance vivido entre Benedetta, Bartolomea e um dildo de duas cabeças cujas extremidades materializam a fé e a luxúria das amantes: de um lado a Virgem Maria e do outro um caralho que faz a felicidade das meninas. A visão enlouquece a ex-madre superiora. Muita inveja e tesão enrustido. Então ela resolve ir dedurar o casal para o núncio que reside em Florença, cidade atingida gravemente pela peste negra. E chega de spoiler. A questão infelizmente não é o belíssimo e tesudo filme de Verhoeven, mas as bandeiras que involuntariamente (ou voluntariamente?) levantou.
Aspas para o diretor Paul Verhoeven: “(…) estaria Benedetta ciente das manipulações que pratica? Eu duvido. O filme não nos dá uma resposta, pois o desejo e a fé são a mesma coisa para Benedetta”. Eis a sinopse estética, a beleza do filme. Nada mais que isso: desejo e fé.
Problema é que acima do desejo, da fé, de Deus e do diabo, da arte e do artista, está a causa. Sob esse aspecto Benedetta seria a primeira mulher empoderada da história que enfrentou os dogmas e o machismo da igreja católica — é o que reza a cartilha e a maioria das criticas do filme. O próprio Verhoeven, talvez pressionado pelos movimentos identitários, ele que não é bobo nem nada, tenta subscrever a forçacão de barra, mas não consegue: “Poderíamos dizer que Benedetta é uma feminista pioneira que ganhou poder numa sociedade masculina, mas duvido que ela se reconhecesse nesse termo”.
Só mesmo na cabeça de fanáticos com uma mentalidade medieval que uma freira que viveu no começo do século 17 (o “medieval” é uma licença poética do diretor, então vamos considerá-lo assim, na verdade Benedetta viveu na idade moderna) podia ter se tornado uma pioneira do feminismo, por que não a pioneira ou a padroeira dos consolos e dildos? Algum demérito no orgasmo pelo orgasmo? Por que não chegar a Deus sem religião? Tão difícil ir ao paraíso sem discurso?
Sabemos que não é fácil “ficar bem na foto” diante da caçada às bruxas em pleno século 21; pior, no entanto, é ser desmentido pela própria criação. “Benedetta” por si só anula qualquer possibilidade e/ou tentativa de “vaselinagem” de Paul Verhoeven. Está escancarado na tela, aos gritos, possessões, orgasmos e epifanias, esta lá: a arte, Porco Dio!, é infinitamente maior que a treva política, que maravilha!
O filme deveria zerar qualquer possibilidade de apropriação por grupos identitários e/ou ideológicos, e dispensar a defesa prévia por parte do diretor. Infelizmente não foi o que aconteceu. O tiro saiu pela culatra, e “Benedetta”, agora, é bandeira da causa lgbtqm+ *. Ainda assim, a criação de Verhoeven continua falando mais alto, vale tirar a prova dos nove assistindo — pasmem! — o próprio filme: as supostas incorporações da abadessa Benedetta e as blasfêmias que ela profere jorram em urros guturais que, aliás, lembram muito os demônios que batem ponto na Igreja Universal do Reino do Edir. Ou seja, o diretor opta pela caricatura, pelo humor. E, assim, descarta qualquer possibilidade de discurso contra o status quo e/ou engajamento feminista. Quando confrontada, Benedetta simplesmente urra. Muito claro, portanto, que nas circunstancias da virada do século 16 para o 17, e na visão de Verhoeven (precisaríamos avisá-lo?), Benedetta só poderia ser uma endemoninhada, repito e separo as sílabas, en-de-mo-ni-nha-da e não, nunca, jamais uma pioneira “empoderada”, mártir ou heroína de qualquer causa, seja lgbtqm+ ou tantas outras oferecidas à mancheia no cardápio dos estigmas contemporâneos.
Seria a mesmíssima coisa que proclamar, daqui a quatro séculos, Elise Matsunaga e Suzane Von Richthofen heroínas da causa das Inteligências Artificias porque exterminaram a humanidade e a espécie humana, ou aberração do tipo. Minha esperança é que no ano de 2422 as inteligências não sejam tão artificiais, fanáticas, histéricas e medievais a ponto de pagar tal mico. Ver ou reler, adaptar ou apagar o passado com o olhar do presente, não é só uma forçação de barra esdrúxula, se fosse só isso, tudo bem: o esperneio é livre e o ridículo é democrático. O problema é quando se anula a obra de arte em detrimento da imposição de uma causa, aí é mais do que burrice, é muita pretensão, é violência. É dar voz para as trevas, é ser medieval no pior sentido do termo, é incrivelmente estar up to date em 2022.
Quinze anos, segundo meu amigo Nilo, é a idade onde o tesão estaciona, e permanece até a senilidade — ainda que o corpo não corresponda ao desejo resta a lembrança, a mágica, um certo ímpeto benedeto que nos salva do vazio, e dá algum sentido para continuarmos acreditando na vida apesar de a vida seguir as leis brochantes da gravidade: fé e desejo, 15 anos. E é isso, somente isso que Benedetta é, um tesão de quinze anos, um tesão de filme.
*Chupar grelo é uma delícia, também curto. Mas não é por isso que sou feminista. Muito menos machista, talvez lésbico como Benedetta. Agora, se é o caso de arrumar uma heroína à frente de seu tempo (apesar de ser lésbica) verdadeiramente feminista e empoderada para não passar vergonha, sugiro Lota de Macedo Soares. Deem um google.