Há personagens que de tão reais parecem já terem nascido prontos, vagando por alguma dimensão à espera do intérprete capaz de encarná-los com a perfeição que merecem. Não se sabe se este é o caso de Roman Coleman e Matthias Schoenaerts; não se pode dizer o quanto o ator ansiara viver um tipo como o protagonista de “The Mustang” (2019) ou se fora tudo obra de um feliz acaso. O que se pode dizer sem sombra de dúvida é que depois de se assistir ao desempenho de Schoenaerts no filme de Laure de Clermont-Tonnerre fica difícil imaginar alguém mais adequado para o papel.
Um homem ferido, que quase não fala, sozinho na pior das solidões, encerrado na vastidão de uma alma deserta, Coleman cumpre pena há mais de uma década por não conseguir domar a raiva bestial que se apossa dele em determinadas circunstâncias. Ainda faltam outros dez anos para que tenha a chance de retomar sua liberdade, e não se pode afirmar com certeza, tomando por base seu comportamento com os outros presos, que não vá se reviver o episódio de violência doméstica que mantém encarcerado há tanto tempo. A performance de Schoenaerts, de um paradoxal cartesianismo que deixa pouca margem para confabulações acerca de seu real estado de espírito quando no personagem, consegue ser vívida e apagada a um só tempo, como se Coleman, completamente desumanizado depois desse longo isolamento compulsório, tivesse se tornado uma máquina. Ou um bicho.
Não que sua vida em sociedade fosse uma beleza — ele só está onde está justamente porque não é bom com pessoas, como ele mesmo faz questão de frisar, que se tenha isso claro —, mas ainda há quem acredite que Coleman pode retomar sua vida, não como antes (ninguém pode, tanto menos depois da experiência de ter sido obrigado a entregar boa parte do que viveu as paredes frias de uma cela), mas ao menos de um jeito menos traumático. A terapeuta vivida por Connie Britton é uma dessas pessoas — talvez seja a única — e só por essa razão insiste em entender o homem por trás daquela figura meio acuada, torta, arrependida, furiosa consigo mesma por ter se impingido um castigo tão grande, que suporta a duras penas e do qual sabe que não pode escapar. O modelo de masculinidade de sujeitos como Coleman — distorcida, atormentada, patológica — vem a calhar em personagens com esse grau de fragmentação social, de que Clermont-Tonnerre extrai o sumo mais doce. Tendendo para um faroeste muito sui generis, em que cavalos selvagens, os mustangues do título, vagam cada qual em sua solidão, ainda que sempre em manada, sem um caubói que os conduza, “The Mustang” menospreza todos os chavões da categoria. Coleman parece disposto a abdicar da aura de machão, que precisa reafirmar sua virilidade a todo instante, à menor agravo, e para tanto deve recorrer à ajuda de uma criatura indócil como ele, mas que não o ameace.
Histórias com animais como coadjuvantes são perigosas exatamente porque eles estão sempre prontos a tomar a dianteira e roubar a cena, e se o conseguem, há algo de muito errado com esse filme. No caso de Coleman, o garanhão bravio que atravessa seu caminho feito um cometa, que ao mesmo tempo em que ilumina sua jornada e confere alguma beleza ao seu desespero também pode terminar de reduzir tudo a pó, não tem o carisma de um Seabiscuit, eternizado por Gary Ross em seu “Alma de Herói” (2003), ou a imponência de Joey, que rivaliza com o personagem central o status de herói em “Cavalo de Guerra” (2011), de Steven Spielberg, e mesmo assim a gente se encanta. Aliás, não tem sequer um nome; alertado por Henry, de Jason Mitchell, só depois de muito tempo é que Coleman se preocupa em batizar o companheiro, que traz consigo sua redenção. Não fosse o programa que consegue capturar cerca de setenta mil dos cem mil mustangues que habitam dez estados americanos, se reproduzindo sem qualquer controle, e oferecê-los a presidiários para que os treinem, sendo encaminhados a leilões na sequência, Marquis poderia passar pela vida sem a chance de mudar o destino de alguém que precisava dele. Myles, o treinador que prepara os detentos para a lida com os cavalos, tem a experiência necessária para saber que por mais árdua que possa ser a relação dos dois — e é mesmo —, eles precisam um do outro. Bruce Dern é outro tiro certo em “The Mustang”; dosando a dureza de seu rosto vincado de rugas e da voz sempre alguns tons acima do razoável com gestos pausados, sutis, Dern, mesmo com toda a rudeza, se constitui um contraponto à humanidade perdida do protagonista. Certamente é nele que Coleman se baseia quando tenta consertar o relacionamento com sua filha Martha, de Gideon Adlon, prestes a dar à luz.
Laure de Clermont-Tonnerre e sua equipe de corroteiristas Mona Fastvold, Brock Norman Brock e Benjamin Charbit, deixam para detalhar o descompasso entre Coleman e Martha já no encerramento, acertadamente, mas queimam muito do capital dramatúrgico do longa com uma subtrama que toca o tráfico de drogas dentro da prisão, sem se aprofundar sobre o assunto — e nem poderia em pouco mais de hora e meia de projeção — ou fazer esse núcleo se ligar ao mote central de alguma forma. As paisagens agrestes das savanas do coração da América não são esquecidas pela fotografia de Ruben Impens, aludindo com senso estético de sofisticação extrema à amplitude dos cenários dourados e recobertos por nuvens de poeira dos westerns de oitenta anos atrás.
Celebração de um novo jeito de ser másculo, felizmente cada vez mais incentivado e apreendido pelos homens, “The Mustang” é uma história como tantas do cinema ao longo dos anos, sobre dores, remorsos, mudança de vida e amores, do homem pelo próprio homem e do homem por tudo o mais que o cerca. Como nunca se sabe de onde pode vir o próximo golpe, deve-se estar disposto a receber toda a ajuda possível.
Filme: The Mustang
Direção: Laure de Clermont-Tonnerre
Ano: 2019
Gênero: Drama/Faroeste
Nota: 9/10