Em meio à infantilidade de super-heróis e aos cometas para destruir o planeta, dois filmes recentes da Netflix voltam à forma do drama psicológico de altíssimo nível. Chegou a hora de, novamente, descer ao mundo das pessoas comuns e ver a complexidade delas. A primeira obra é “O Fio Invisível”, dirigido por Claudia Llosa e adaptado do belíssimo romance “Distância de Resgate”, da argentina Samanta Schweblin. A outra é a versão de Maggie Gyllenhaal para o livro “A Filha Perdida”, da italiana Elena Ferrante.
Explorar a psicologia dos personagens já não significa, há muito tempo, que um filme deve confirmar teorias existentes a respeito do comportamento humano. O bom cinema busca bagunçar as certezas que temos sobre quem somos, como agimos, de que maneira reagimos. Estão aí David Lynch, Lars von Trier e Pedro Almodóvar, todos mestres em vasculhar o interior das pessoas. Sobretudo eles investigam o espírito, a alma ou o nome que se dê para o que pensam e o que querem as mulheres contemporâneas.
Os dois filmes da Netflix colocam o universo feminino em primeiro e último planos. Será que apenas mulheres poderiam escrever e filmar as histórias de “O Fio Invisível” e de “A Filha Perdida”? Acredito que sim, e isso dá um nó na cabeça de quem acha que existe uma forma universal para o ser humano, uma estrutura imutável para pessoas de várias partes do mundo. O cinema ainda permite um jogo vivo, sem regras fixas ou teorizações prévias de como agem os personagens em diversas situações.
O diretor Alain Renais foi um dos primeiros a pensar a imagem em movimento como forma de desestabilizar a psicologia, mesmo chegando à destruição narrativa: “Quando vejo um filme, interesso-me pelo jogo de sentimentos mais do que pelos personagens. Imagino que podemos chegar a um cinema sem personagens psicologicamente definidos, no qual o jogo dos sentimentos circularia. Como em uma pintura contemporânea, o jogo das formas chega a ser mais forte do que a história”.
O jogo das formas está presente em “O Fio Invisível”. O filme é narrado pelas vozes em off do menino Davi e de Amanda, uma mulher de cidade grande na Argentina que vai passar uma temporada numa casa campo com a filha pequena. O campo que é um mito para a cultura argentina. Lá ela vai conhecer Carola e seu estranho filho Davi. O grande barato é a maneira como Claudia Llosa amarrou a narrativa que ora parece um suspense psicológico, um pesadelo, ora uma história realista.
No filme de Claudia Llosa, o centro da trama é o medo materno que Amanda e Carola têm de que seus filhos se machuquem ou morram. Um fantasma que assombra a maternidade, sobretudo na primeira infância dos filhos e filhas. A narrativa traz uma sucessão de terror e situações aparentemente absurdas. E a grande ameaça está na intoxicação por herbicidas e inseticidas usados nas plantações próximas aquela casa de campo. A máquina capitalista da agricultura é a fonte para envenenar pessoas.
“A Filha Perdida” também coloca questões desestabilizadoras: e se as mulheres, sobretudo as mães, tivessem a mesma liberdade de escolha que os homens/pais? Ser livre para, por exemplo, dizer que não quer mais a maternidade no centro da vida pessoal e social. Ao gênero masculino, é facultada essa possibilidade de recusar a paternidade e se distanciar dos filhos. De uma mulher, espera-se o comportamento a mamãe-urso (superprotetora) e não da mamãe-loba (esta deixa os filhotes aos cuidados da matilha).
Maggie Gyllenhaal amarrou sua narrativa em torno de um vai-e-vem, entre presente e presente da personagem Leda (interpretada por Olivia Colman e Jessie Buckley). Ela é uma professora, renomada especialista em literatura e que vai passar uns dias de férias numa ilha grega. No local, vai conhecer e entrar em choque com uma família de turistas, principalmente uma mãe e uma filha pequena. Começa então o conflito interno e a puxada do fio da meada da memória que reconta a experiência de Leda.
A professora vai revelando suas sombras, histórias condenáveis socialmente dentro de um padrão psicológico rígido. Como ressaltou há mais de 50 anos Alain Resnais, é preciso colocar o jogo dos desejos inconfessáveis em movimento. Disso tudo, resultou um belo filme de estreia de Maggie Gyllenhaal. E naquelas ilhas gregas, também ocorreu a grande história de amor, liberdade e imprevisibilidade, protagonizada pelo músico Leonard Cohen no documentário da Netflix “Marianne e Leonard: Palavras de Amor”.