O documentário “AmarElo — É Tudo pra Ontem”, presente no catálogo da Netflix, constrói uma ponte entre o modernismo de Mário de Andrade e a cultura brasileira do século 21. O protagonista e narrador do filme é o rapper Emicida, que realiza um show no Teatro Municipal de São Paulo, local da celebrada Semana de Arte Moderna de 1922. Por meio de uma narrativa histórica, o cantor estabelece um fio da meada didático, ao longo de cem anos de manifestações culturais no Brasil.
O filme do Emicida foi lançado em meio aos preparativos para as comemorações, neste ano, do centenário da famosa Semana. Mas como se vive em tempos antimodernos, as celebrações em curso tendem mais para o revisionismo e para os ajustes de contas (uma série de vendetas, em alguns casos) que desqualificam o modernismo. Há, por exemplo, o discurso para diminuir a importância da vertente paulista do acontecimento e valorizar a herança dos cariocas. Bairrismos que não leva a lugar algum.
A guerra de narrativas, como se vê, invadiu até as comemorações do evento que se firmou como divisor de águas no século 20, tendo repercussões culturais, artísticas, sociais e políticas. O samba e o futebol são casos de símbolos nacionais “inventados” naquela época. Embora venha do século 19, a ideia de miscigenação racial (o encontro de brancos, negros e índios) também ganhou força definitiva no período. Mas o que restou das utopias e dos projetos dos modernistas de 22 para os dias atuais?
O modernismo dos anos 1920 foi um daqueles momentos de tomada de consciência dos brasileiros e brasileiras, segundo o crítico Antonio Candido. Assim como aconteceu no romantismo (que despertou o sentimento de “país novo”), os modernos criaram a noção do Brasil como nação atrasada. Um povo com forte herança rural, sem indústria ou tecnologia, deveria buscar uma equiparação ao que se passava nos países europeus. A Europa que era sacudida pelas vanguardas artísticas e políticas.
Conversa ilustrada
Além da busca da modernidade, a utopias modernista era o encontro de classes sociais, de letrados com iletrados. Trata-se da ideia de uma “conversa” entre pessoas diferentes. Em carta para Carlos Drummond de Andrade, o escritor Mário de Andrade explicou esse sentimento de aproximação: “E então parar e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição”.
Já entrou para os livros uma noite de 1926 que juntou figuras como Heitor Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque) e Gilberto Freyre para uma “noitada de violão” com Pixinguinha e Donga. Contado pelo antropólogo Hermano Vianna, esse encontro de classes é o parto simbólico do samba como música nacional e um dos mitos fundadores da identidade brasileira contemporânea. O diálogo de homens letrados e sambistas iletrados fundou uma verdadeira utopia da cultura brasileira.
No entanto, segundo Antonio Candido, o modernismo e seus desdobramentos foi obra de um radicalismo de classe média. Nunca existiram revolucionários no sentido europeu do termo, se aliando à população pobre ou trabalhadora. Havia, sim, um projeto vindo de cima para baixo que forjou o país (por isso, a violência recorrente). Jamais houve programa ou iniciativas que fossem centradas no ideário forte de democracia e vida popular. O máximo que se permitiu foi a conversa ilustrada e conservadora.
Mesmo assim, os acontecimentos dos anos 1920 tiveram o caráter de fundação de nova consciência. O desdobramento de tudo isso veio na década seguinte. O Brasil moderno tomou forma, como conhecemos hoje, a partir da chegada de Getúlio Vargas ao poder. Sob um regime autoritário ou ditatorial, o político gaúcho mudou os rumos do país. Lançou, por exemplo, a ideia de uma sociedade do trabalho formal e turbinou a conversão da economia paulista da agricultura falida para a indústria.
Os paulistas deram à luz o modernismo do século 200, mas foram os primeiros a reagir às orientações varguistas. Foi um desejo de autonomia, por exemplo, que resultou na fundação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934. Criou-se uma escola superior com professores franceses, italianos e alemães para formar a super elite que comandaria o estado de São Paulo e, também, o país. Estamos falando de um projeto de poder que operou na base material (a indústria) e imaterial (a educação, a cultura).
Difícil encontrar um período tão marcante na história da cultura brasileira como a década de 1930. Na época, começaram a surgir as grandes interpretações históricas e sociológicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. Apareceu o romance nordestino de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego. Também entraram em cena os refugiados judeus, já na virada para os anos 1940, que dariam uma contribuição fundamental para a inteligência do país.
Anos dourados
No intervalo de 1922 a 1960, o Brasil pareceu absurdamente inteligente. Creio que a síntese modernista esteve no surgimento da música da Bossa Nova e na publicação do romance “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa. Junte-se a construção de Brasília, e fica claro que o país tinha uma ambição de ser grande e relevante no mundo que vivia os anos dourados do pós-Segunda Guerra Mundial. Até hoje, todo político brasileiro sonha em resgatar aquele estado de espírito.
O modernismo de 22 teve novo impulso na década de 1960, quando o mundo foi inundado pela ideia de revolução. Marcelo Ridenti chama a cultura brasileira daqueles anos de “romantismo revolucionário”. Foi uma mistura de crítica ao capitalismo com um olhar positivo para a figura do homem simples do interior. Exemplo: estudantes fizeram os Centros Populares de Cultura (CPC), percorreram o sertão nordestino e criaram um teatro e um cinema que, anos depois, resultou nas telenovelas da TV Globo.
O chamado Cinema Novo foi também beber no modernismo anterior para misturá-lo ao neorrealismo italiano, à Nouvelle Vague francesa e aos cineastas Eisenstein e Buñuel. Vêm dali as imagens canônicas da favela carioca e sertão do Nordeste. Representações da vida popular que se cristalizaram no imaginário de todo brasileiro. Também nasceu na época o tropicalismo musical. E a peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, virou um marco com sua encenação no final dos aos 1960.
Existem três filhos de Oswald que despontaram no período tropicalista: Glauber Rocha, Caetano Veloso e João Ubaldo Ribeiro. São baianos que frequentaram o mesmo ambiente cultural de Salvador, em torno da universidade local. A conversa entre eles resultou em obras da mais alta sofisticação estética, pagando tributos aos modernistas: a vontade de captar o sentimento popular, as vanguardas artísticas, as alegorias e, principalmente, a ambição de interpretar o sentido da nação.
Nos anos 1970, o projeto modernista dá sinais de esgotamento no Brasil e em toda América Latina. Dali em diante ocorreu a passagem da lógica do Estado para a do mercado na região, conforme apontou Idelber Avelar. O projeto modernista ainda ecoou em manifestações como a poesia marginal do Rio de Janeiro e o concretismo dos paulistas. Mas os tempos não eram mais de utopia. As ambições políticas e culturais se rebaixaram, até atingir o ponto de não retorno na virada dos anos 1980 para os 1990.
Anos cinzentos
Os últimos suspiros do modernismo apareceram em 1984, bem na volta da democracia do país. Os marcos culturais foram o documentário “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho; o filme “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos; e o romance “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro. Os três exploraram e esgotaram as armas estéticas e políticas do romantismo revolucionário. Depois, o que ditou a regra da cultura foi o mercado autodestruidor.
Se hoje há traços do modernismo de 22 ou do romantismo revolucionário dos anos 1960, ele passa pelas periferias de Emicida e dos Racionais MCs. Mas não existe uma vontade geral de “conversa”, como defendia Mário de Andrade. As margens do rap, do funk, falam por si mesmas e entre elas. O interior brasileiro fala por meio de uma cultura sertaneja, concentrada na música. É impensável que um artista de classe média de São Paulo ou Rio de Janeiro dite a regras para quem está nas cidades interioranas.
Alguns vestígios modernistas estão ainda no pensamento inspirado pela cultura indígena (o perspectivismo ameríndio), mas ainda é uma teoria a ser desdobrada em produção cultural. Por ora, prevalecem as ideias de Eduardo Viveiros de Castro, Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Eliane Brum. Espera-se que, apesar da conjuntura extremamente hostil, esse rico acervo se transforme em filmes, livros e obras de arte para um público maior. O obstáculo a esse imaginário indígena é o discurso “o agro é pop”.
O Brasil de hoje e que celebra o agronegócio é parecido com o Brasil da Velha República, antes de 1930. É a morte do modernismo, com imobilismo social e irrelevância perante o mundo. Antes era o café, hoje temos soja e carne bovina. A indústria definhou. Fato é que não se faz um país moderno só com isso — e muito menos sem cultura. Ninguém sabe quem foram os presidentes nas primeiras décadas do século 20, todos eles irrelevantes. Mas sabem quem foi Mario de Andrade, os escritores regionalistas, os tropicalistas.