Filme da Netflix, implacável, violento e realista, não deixará você ser o mesmo depois de assisti-lo

Filme da Netflix, implacável, violento e realista, não deixará você ser o mesmo depois de assisti-lo

Há filmes que se destacam pelo que são e existem aqueles que se tornam importantes justamente por não dizerem o que deveriam. “Joy” pertence à segunda categoria por tratar com a leveza possível um problema doloroso, melancólico, mas assustadoramente atual, cuja solução abrange muito mais que políticas públicas e assistência aos desvalidos.

O título do filme da austríaca-iraniana Sudabeh Mortezai é de uma ironia cortante. Alegria é um dos sentimentos que as protagonistas de “Joy” quase nunca experimentam — poder-se-ia juntar a ela, empatia, solidariedade, respeito, honra, sendo que este último se relaciona diretamente à forma como se veem no mundo, isto é, elas sabem que não podem reivindicar nada que as glorifique ganhando a vida como ganham. O que as prostitutas nigerianas retratadas em “Joy” vivem é um estado de euforia constante, entrecortado por recorrentes episódios de tristeza, que driblam como conseguem, bem como a hostilidade do cidadão comum e as ameaças de deportação pelas autoridades da Áustria, o país para o qual imigraram, ludibriadas e autoiludidas pelo sonho de uma vida melhor. Vivendo como prisioneiras, achacadas por cafetinas que fazem com que se encalacrem em dívidas que levam anos para quitar, correndo da polícia e de clientes violentos que não pagam o valor acertado pelos programas, é difícil tecer um comentário positivo sobre essas mulheres, almas frágeis que despertam compaixão e repulsa, curiosidade e enfado. 

O maior préstimo de “Joy” é seu caráter documental. Mortezai faz questão de pontuar seu filme, lançado em 2018, por lances contundentemente verídicos, a começar pelo elenco. A diretora consegue fazer o público absorver boa parte da complexidade do tema que se propõe a analisar, uma página triste da nova realidade da Europa a partir dos anos 1980, intensificada por problemas macroeconômicos, dramas de família, racismo e o lugar da mulher entre o fim do século 20 e o princípio do século 21. As mulheres negras que protagonizam a história sofrem a exploração de estrangeiros dentro das comunidades em que passam a viver, e a partir de então já se veem condenadas. Na verdade, a opressão tem início ainda antes, na própria Nigéria, onde são assediadas por olheiros treinados para identificar as garotas ideais para a atividade sexual num nicho bastante específico, estritamente relacionado ao fetiche. Por óbvio, as muito jovens e bonitas são o alvo preferencial das quadrilhas.

Sudabeh Mortezai tem se mostrado uma diretora talentosa quanto a desvelar as chagas das sociedades contemporâneas. Por “Macondo” (2014), sobre um garoto de onze anos, refugiado checheno vivendo em Viena, Mortezai fora selecionada para uma vaga no Festival Internacional de Cinema de Berlim daquele ano. Com “Joy”, a cineasta dobrara a aposta, exibindo um trabalho ainda mais esmerado, que por mais que se debrucem sobre argumentos distintos, encontram um eixo em comum ao discorrer sobre cenários de degradação moral que se espraiam para a vida em sociedade de todo um país — sendo que ambos se passam na capital austríaca. Juntos, “Macondo” e “Joy” compõem um registro para além do cinematográfico do mundo como ele se nos apresenta hoje, assolado por crises humanitárias tão silenciosas quanto devastadoras, atacadas sem a urgência e a tecnicidade que exigem. 

A diretora preenche seu roteiro com os relatos pungentemente realistas de suas atrizes, quase todas ex-profissionais do sexo flagradas oferecendo seus corpos pelas ruas de Viena, detidas e logo mandadas de volta à Nigéria. As personagens são chamadas pelo nome de suas intérpretes, o que confere uma naturalidade que faz toda a diferença quanto à estrutura narrativa, que igualmente se enriquece ao se valer do conceito do tempo elástico quanto a contextualizar a presença de cada uma dessas mulheres na trama e o destino que passam a trilhar, do momento em que são aliciadas à devolução ao país de origem. O espaço entre um e outro evento é onde o filme tem a oportunidade de se mostrar relevante. E não faz feio.

A história se torna sólida na figura de Precious, encarnada por Precious Mariam Sanusi, de 17 anos, coagida a se prostituir para mandar dinheiro para a família na Nigéria. Precious é mostrada num ritual de juju, prática de magia negra relacionada à subjugação da sexualidade da mulher, a fim de mantê-la como escrava. O problema da coisificação feminina vem à baila de forma ainda mais incisiva conforme a sequência se desenrola, uma vez que quem ministra a cerimônia é um homem, negro como ela, e que por ser idoso, deveria lhe oferecer proteção. A mandraca, que envolve o sacrifício de um galo, a aplicação de unguentos à base de ervas medicinais e evoluções ritmadas que o velho conduz, visa a amarrá-la ao ofício que passará a exercer no Velho Mundo, acuada pela força do medo, por seu turno fundamentado na superstição. O que se assiste é escandaloso, mas ainda mais chocante é saber que este é um uso muito popular quanto a dominar mulheres jovens, dispondo delas como se quiser. Com a chegada de Precious a Viena, a figura voluptuosa de Joy também passa a disputar a atenção do público. A personagem de Joy Anwulika Alphonsus, uma meretriz experiente que parece prestes a quitar seus débitos com Madame, a Ma, a cafetina falsamente afetuosa de Angela Ekeleme Pius, é encarregada de tomar conta da novata e fiscalizar seu trabalho, o que inclui checar se cobra o valor estipulado e o repassa integralmente. Se porventura fracassar, Joy será banida da agência de Ma, dificilmente conseguirá outro emprego, quer no meretrício, quer em outro ramo — por causa da perseguição da cafetina, influente no submundo e nas altas rodas — e, por conseguinte, nunca há de recuperar a custódia da filha. Ou seja, está tão cercada quanto Precious.

A falta de sentimento fraternal entre indivíduos que deveriam manter-se unidos pelo que têm de mais sagrado, riqueza que o instinto de sobrevivência lhes surrupia, é uma das grandes podridões de que fala Sudabeh Mortezai em “Joy”. No desfecho, em que uma Joy ainda sôfrega por se incorporar a qualquer custo a seu meio social não consegue escapar aos desmandos de tipos marginais, a diretora dá sua opinião pessoal sobre o mote central de seu filme, que parece mesmo apenas uma promessa de felicidade.


Filme: Joy
Direção: Sudabeh Mortezai
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.