É desnecessário dizer que “Ninfomaníaca — Volume 2” é cheio de imagens fortes. Lars von Trier, para não variar, se vale de planos sofisticados para defender não só seu ponto de vista como o de seus personagens. A esse respeito, Joe continua, como se viu no “Volume I”, cheia de caprichos. A personagem central da sequência, iniciada em 2013, tornou-se célebre ao expor as contradições, os medos e as pragas de sua sexualidade nefasta, que se alastraram como um câncer por toda a sua vida e subtraíram-lhe a própria vontade de viver. Ainda no mesmo ano, o diretor dinamarquês voltou a sentir a urgência de socorrer sua protagonista, vivida por uma Charlotte Gainsbourg visivelmente exaurida, estendendo o desabafo iniciado no primeiro episódio. Talvez fosse o caso de encaminhar a pobre Joe a um profissional qualificado, capaz de ajudá-la a se livrar de seus demônios faunescos de uma vez por todas, já que mantê-la nessa terapia improvisada, em que fala, digressiona, devaneia e nunca é contestada com o devido rigor definitivamente não está funcionando.
O poeta americano e.e. cummings (1894-1962) era mestre em descrever as tantas dicotomias do gênero humano. A dada altura de “Eu Levo Seu Coração Comigo”, cummings — que assinava seus poemas em letras minúsculas mesmo — diz que a vida, em forma de árvore, cresce mais do que a alma espera ou do que mente seja capaz de esconder, um fenômeno maravilhoso, segundo ele, que mantém as estrelas a uma distância segura. Com Joe se deu o oposto. A alma, ou melhor, os anseios da alma, tomaram-lhe a vida de assalto, não restando nada mais que a ilusão de felicidade, de euforia que fosse, por tudo o que queria que sua jornada tivesse sido e não foi. Se no “Volume I”, as filosofices de Joe e Von Trier tinham alguma graça, ainda que já começassem a cansar, em “Ninfomaníaca — Volume 2” ficam insuportáveis logo no prólogo da história, em que a protagonista continua prostrada, narrando suas desventuras sexuais a Seligman, interpretado por Stellan Skarsgård, que literalmente rouba a cena na última sequência do filme. Tarde demais, no entanto.
Na verdade, Seligman vai preparando o terreno para essa guinada ao longo de toda a narrativa. Como um guia e um intérprete do que Joe lhe descreve, só se pode medir a dimensão da performance de Skarsgård em se comparando seu desempenho no transcorrer do filme a essa passagem em especial, quando se conclui que sua natureza pura, meio beata, não passava de estratégia. Lamentavelmente, seu brilho fica bastante empanado, uma vez que não é nada difícil superar Gainsbourg. Se no primeiro volume, já se notava esse cansaço, tanto de Joe como da própria atriz, em “Ninfomaníaca — Volume 2”, ela, coitada, entrega os pontos. Há momentos em que a personagem dá sinal de vida — já volto ao assunto —, mas no geral, o saldo é negativo. Os flashbacks, um grande acerto de Von Trier no primeiro segmento, quando enquadramentos propositalmente artificiais geram a sensação de distanciamento, do tempo e da personagem central — uma ousadia criativa do diretor que resulta num efeito bastante divertido, sublime até —, são quase banidos do “Volume 2”, redundando em mal-entendidos cênicos e semânticos medonhos. Em determinada passagem, Joe contracena com Jerome, de Shia LaBeouf, na pele de Stacy Martin, como que para lembrar o espectador de onde a história partiu; a seguir, quem surge na tela é Charlotte Gainsbourg, mas o tempo não passou, ou passou apenas para ela. O filho que teve com o personagem de LaBeouf, com quem Joe se casara, ainda tem de ser conduzido no carrinho, o próprio Jerome tem o mesmo rosto e nem os móveis do apartamento em que vivem mudaram um milímetro. Se fora uma licença poética, como se com isso o diretor quisesse dizer que só a protagonista havia envelhecido, faltou munir a trama de algum recurso que desse a entender dessa maneira, como um dos milhares de textos em off ditos por Gainsbourg. Como ficou, parece só um erro de continuidade mesmo, dos mais pueris, como num besteirol despretensioso qualquer.
Decerto o ponto alto de “Ninfomaníaca — Volume 2” remonta a uma das sequências em que Joe revela a Seligman uma de suas experiências sexuais sem sexo — e o que seria do público se não fosse o personagem de Skarsgård? Nesse momento, a personagem conta acerca do orgasmo espontâneo que tivera, aos doze anos, num descampado, estendida debaixo de um céu nublado. De súbito, lhe surgem dois espectros sob a forma de figuras femininas, uma claramente oriental, a outra quase indefinível. Joe levara a vida supondo que essas mulheres seriam versões da Virgem Maria, provavelmente condenando-a pelo que acabara de fazer, ainda que não tivesse feito nada, pelo menos não diretamente. Seu organismo apenas lhe dava a resposta mais objetiva de que era capaz a fim de que entendesse que o sexo faz parte da natureza do homem, e por mais incontrolável que pareça, só se manifesta depois de disparado um gatilho qualquer. Mas Seligman e sua cultura colossal a absolvem; observando cada detalhe do que Joe lhe conta, ele conclui que sua visão não tem nada de celestial. As aparições reproduziam as imagens da grande Prostituta da Babilônia, montando Ninrode, um dos déspotas mais poderosos da era pré-cristã, em forma de touro, e Valéria Messalina, mulher do imperador romano Cláudio, conhecida como uma mulher adúltera e promíscua. Seligman se alonga sobre a história de Joe da perspectiva religiosa, explicando que cada uma das visões representava um lado da cristandade. À igreja ortodoxa, a porção oriental, cabe o que diz respeito à mudança de vida, quando o Filho do Homem ressuscita para que vejamos que sempre há esperança, mesmo quando a morte parece se impor; já a igreja romana se detém na Paixão de Cristo, que culmina com Sua agonia no Calvário, para que a humanidade tenha os pecados remidos. No meio, sem saber o que pensar, perdida, Joe.
Como se poderia supor, o casamento com Jerome é um fracasso no que tange ao sexo. Escravizada por seu desejo, Joe não consegue sentir prazer com um homem só — e é aqui que Charlotte Gainsbourg tenta dizer a que sua personagem veio. É o próprio Jerome quem sugere que Joe tenha amantes e ela, claro, acata a recomendação do marido. Como não tem limites, uma vez que está doente, Joe estica a corda um pouco mais a cada dia. Como a tentativa de intercurso com a dupla de irmãos africanos que traficam drogas na esquina de sua rua não surte efeito — um respiro cômico sagaz —, recorre a um certo K. O personagem de Jamie Bell é famoso no submundo por espancar mulheres, a propósito de lhes dar essa última possibilidade de prazer sexual que tanto procuram. Joe logo está ainda mais entregue à sua perversão, a ponto de ser despedida e deixar o filho sozinho para se encontrar com seu carrasco. Faça-se-lhe justiça: esse é o único instante em que Charlotte Gainsbourg é indispensável; nem mesmo Willem Dafoe, numa participação afetiva e saborosa, conseguem tornar “Ninfomaníaca — Volume 2” menos intragável e previsível, ao descobrir em Joe um talento que qualquer um nota a quilômetros.
Teria sido muito mais eficiente do ponto de vista dramatúrgico unir “Ninfomaníaca — Volume 2”, devidamente editado, ao primeiro filme, ainda que a duração pudesse exceder um pouco o aconselhável para fins comerciais. É nítido que o problema do segundo segmento não é esse, mas um filme mediano seria um mal menor que um filme mediano e um, para dizer o mínimo, tedioso.
Filme: Ninfomaníaca — Volume 2
Direção: Lars von Trier
Ano: 2013
Gênero: Drama/Erótico
Nota: 6/10