O reencontro de uma mãe com seu filho, desaparecido há alguns anos, deveria ser motivo só para abraços calorosos, choro convulso e a sensação de se estar tirando das costas um peso inestimável. Contudo, em “A Próxima Pele” Isaki Lacuesta e Isa Campo apresentam um cenário tão pouco nítido, com personagens que se mantêm tão longe do público, que à primeira vista é impossível dizer se essa virada é mesmo benéfica.
Lacuesta e Campo tomaram essa premissa emprestada do documentário “The Imposter” (2012), de Bart Layton, sobre um garoto supostamente vítima de sequestro e tortura aos treze anos que revê os pais três anos depois, o que dá azo a uma série de desconfianças do casal. Em seu filme, lançado em 2016, os diretores são pródigos em subir e descer o tom melodramático da história a depender do que esteja sendo mostrado — e por quem —, conferindo à produção, uma parceria entre Espanha e Suíça, diversos prêmios no Festival de Cinema de Málaga.
“A Próxima Pele” poderia ser uma história voltada ao terror raiz, com o predomínio do gore, do jumpscare, da violência pura, todavia Lacuesta e Campo optam por preservar na tela a rica natureza narrativa do roteiro, escrito por eles e Fran Araújo. A escolha por ambientar a trama nos sombrios e gelados Pireneus espanhóis, retratando o cotidiano sufocante das pequenas comunidades que habitam o lugar, é outro fator a contribuir para o clima de mistério perene da história, em que Gabriel, um garoto de cerca de três anos, some sem explicação. Quase década e meia depois, sua mãe, Ana, vivida pela premiada Emma Suárez — famosa internacionalmente pouco depois como a estrela de Pedro Almodóvar em “Julieta” (2016) —, fica sabendo que um garoto parecido com seu filho está internado num orfanato, onde passara a ser chamado de Leo, uma homenagem a Lionel Messi, jogador argentino cuja camisa o garoto nunca tirava. Todo o segredo do filme está concentrado nessa figura, sobre a qual não se pode afirmar nada. Não se consegue saber se Leo é de fato o filho perdido de Ana, se esquecera a própria história, até hoje aterrado pelo trauma — e por isso incapaz de contribuir com informações relevantes sobre seu passado — ou se se trata de um criminoso, alguém que vê na oportunidade de deixar o abrigo e ir morar com uma mulher sozinha e desorientada um atalho para ambições maiores.
Valendo-se do argumento da mãe que num momento qualquer de distração — ou de fraqueza mesmo — se descuida e deixa ir embora justo a pessoa a quem deveria proteger, como “A Filha Perdida” (2021), de Maggie Gyllenhaal, “A Próxima Pele” também questiona as sempiternas culpas da maternidade, com ainda mais força que no filme de Gyllenhaal. Suárez exibe total domínio do papel, levando à cena exatamente o que a personagem lhe exige. Resta visível seu desespero, sua tibieza, seu desconforto, mesmo já depois de ter recuperado o filho (ou principalmente por isso), fazendo recrudescer a hesitação e o desassossego de quem está assistindo. Quanto ao Leo de Àlex Monner, o ator dá um banho. Em seu primeiro papel de destaque o catalão capta a essência do protagonista, à primeira vista um garoto como outro qualquer, mas que de pouco em pouco revela sua natureza monstruosa, mesmo assim quase sem querer. Aos 21 anos, Monner transmite a exata noção de quem é Leo, um adolescente taciturno, que deixa para demonstrar sua fragilidade apenas quando lhe convém, como nos momentos em que Michel, seu protetor no orfanato, entra em cena. Bruno Todeschini é outra excelente surpresa em “A Próxima Pele”; como Suárez e Monner, o ator igualmente consegue mergulhar no mais fundo da alma do personagem a que dá vida. Num primeiro momento completamente empático a Leo, Michel crê que o garoto passa por um processo de amnésia dissociativa, isto é, esquecera o que fizera sua vida mudar tanto. Fica no ar qual a medida de fantasia no que o filho de Ana conta a respeito de sua vida sem os pais, as supostas aventuras por terras distantes, as histórias por trás de cada uma das muitas tatuagens. Esse seu aspecto de extravagância tresloucada, mas que visa a atingir um objetivo bastante específico, torna-se ainda mais óbvio com suas lembranças pontuais sobre certos detalhes de sua vida como Gabriel, dando indícios ainda mais fortes de que é o sujeito errado no lugar errado à medida que conhece Ana. A dada altura da história, vem à tona a sugestão de um possível incesto, percebido por Enric, tio paterno de Gabriel e amante da personagem de Suárez. Embora consiga transparecer o desequilíbrio de Enric, a performance de Sergi López não sai da mesmice, variando entre regular e exagerada. Já Igor Szpakowski se sai melhor como Joan, o melhor amigo de Gabriel com quem Leo continua a manter um bom relacionamento, que descamba para experiências que os dois não haviam tido, juntos pelo menos. A esse episódio se somam as suspeitas de abuso parental e de assassinato e a sabida infidelidade de Ana, potente descarga de obscuridade num filme que se torna notável justamente por esconder quando deveria revelar.
A ligação pouco firme entre Leo e Ana, que vai se estabilizando do meio para o desfecho reforça o sentimento que paira acima da vida daquelas duas almas partidas, não importando se o garoto saiu do ventre daquela que o quer como filho ou não. A bela fotografia de Diego Dussuel capta a essência do que trata o filme logo no início. “A Próxima Pele” é como o gelo que derrete na rocha ao passo que a temperatura sobe. Há os enigmas a que devemos nos ater e os que precisam deslizar e correr para longe, deixando o essencial incólume.
Filme: A Próxima Pele
Direção: Isaki Lacuesta e Isa Campo
Ano: 2016
Gênero: Suspense/Drama
Nota: 9/10