A história do cinema do século 20 se confunde com a vida de Sofia Loren. Nascida Sofia Villani Scicolone, a menina que captava todos os olhares graças ao corpo escultural e a um par de olhos capazes de derreter calotas glaciais, estava prestes a despontar para a carreira artística em 1950, aos quinze anos, justamente pela participação num concurso de beleza. Não demorou muito para que Sophia Loren — que aceitou a sugestão do marido, o diretor Carlo Ponti (1912-2007), e adequou o nome à anglofonia que começava a se alastrar pelo globo — sublimasse o fato de ser uma mulher muito bonita, para ela tão natural, e vencesse pelo talento, deixando de lado o glamour que esperavam que sua figura incorporasse e perseguindo os papéis pelos quais de fato seria lembrada. A atriz foi às últimas consequências para convencer Vittorio De Sica (1901-1974) de que era a intérprete certa para a Cesira de “Duas Mulheres” (1960), e sua teimosia se mostrou acertada: Sophia Loren foi laureada, entre outros prêmios, com o Oscar de Melhor Atriz por sua performance no filme.
Verdadeiro baluarte da arte dramática na tela grande, onde se criou, Loren já atingiu sete décadas de uma carreira bem-sucedida, pautada por profissionalismo à toda prova — há quem diga que ela seja capaz de trabalhar ardendo numa febre de quase quarenta graus — e critérios muito severos quando se trata de integrar o elenco de um filme, mesmo numa participação mais discreta. Decerto esse foi um dos motivos para que ficasse mais por mais de dez anos longe dos sets, e sempre que ela decide voltar, é como se o tempo retrocedesse setenta anos e ela virasse aquela garota que disputava a preferência do público em certames em que a casca era o que importava. Sophia Loren sempre foi muito além do que os olhos poderiam alcançar.
Em “Rosa e Momo”, Loren matou dois coelhos com uma só cajadada: voltou por cima e ainda deu uma forcinha para o filho, Edoardo Ponti, diretor do longa. Baseado em “A Vida pela Frente” (1975), de Romain Gary (1914-1980), já adaptado por Moshé Mizrahi (1931-2018) em “Madame Rosa” (1977), o filme de 2020 mantém a história consagrada pela pena de Gary. Madame Rosa, de Loren, sobreviveu ao Holocausto, o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas não à dureza de ter de ganhar a vida como prostituta. Aposentada e idosa, Rosa passou a assistir aos filhos de profissionais do sexo do subúrbio de Paris, muitas vezes permanentemente, uma vez que ou as mães não têm estrutura emocional e tempo para educá-los, ou ficam um bom tempo presas, por causa do envolvimento em atividades correlatas à prostituição, como roubo e tráfico de drogas, ou simplesmente desaparecem. Madame Rosa fora se tornando a agulha no tecido social completamente esgarçado do meio em que vive, tomando seus pupilos como a linha que algum dia há de remendar esses rasgões. Mas um ou outro deles sempre dá um pouco mais de trabalho.
É comovente a entrega da atriz para o papel. Valendo-se do roteiro, de Ponti, Ugo Chiti e Fabio Natale, Loren explora outras nuances que as privilegiadas por Simone Signoret (1921-1985) no trabalho de Mizrahi. Sua Madame Rosa foi mesmo pensada sob medida para ela — e nada como ser dirigida pelo próprio filho para se identificar com a alma de um personagem —: mal-humorada, espirituosa, rígida, emotiva, às vezes ao mesmo tempo. Com um vasto currículo de abandono, percebe-se que a velha meretriz cortou um dobrado ao longo da vida, e Loren deixa isso muito claro, mas não endurecera com o sofrimento além do inevitável. Quando sente que está prestes a se romper, ela se recolhe a um cômodo do apartamento e se entrega à solidão mais profunda que alguém pode ocultar, ainda que resista com toda a pouca força que lhe resta. Madame Rosa sabe que só pôde sobreviver graças a seu talento para driblar aquelas emoções inquietantes demais, que ainda hoje deixam-na entre perplexa e apavorada.
A chegada de Mohamed, o Momo, é a grande reviravolta, na trama e na vida da protagonista. O senegalês de catorze anos vivido por Ibrahima Gueye é, como Rosa, um espírito alquebrado, a começar pela própria origem. Negro, muçulmano e órfão, Momo não se lembra do Senegal, ao passo que não consegue se integrar de todo à cultura da terra que o acolheu. A única coisa que lhe confere algum senso identitário é saber que o pai assassinara sua mãe por ela não querer mais se prostituir. Como Rosa, Momo foi tendo de se virar ao longo da vida, quase sempre ultrapassando a linha da legalidade, ao traficar pequenas porções de maconha e cocaína, o que a veterana detecta logo. Tentando manter os problemas longe, do garoto e de si mesma, Madame Rosa arruma trabalho para Momo na loja de Hamil, de Babak Karimi, contando com a amizade de Lola no novo desafio de evitar que o personagem de Gueye se perca de vez. Lola, interpretada com muita decência e coragem pela atriz Abril Zamora, transexual assumida, vem a ser mais um achado no trabalho de Edoardo Ponti. Misturando com equilíbrio essas duas naturezas, a do boxeador peso médio durão, que deixara de ser, mas que de alguma forma ainda habita nela, à delicadeza da mulher que cria Babu, o filho do companheiro com quem desenvolve laços maternais que ninguém ousa questionar, Zamora reacende Rosa quando sente que a amiga quer se apagar. A relação entre Madame Rosa, Momo e Lola, repleta de altos e baixos, torna-se o maior atrativo do filme, mesmo nas sequências em que um se destaca mais que o outro.
Sophia Loren conduz o ocaso de sua vida com a mesma energia e o mesmo decoro com que tem levado sua carreira, tão inacreditavelmente longa quanto fascinante. O desfecho triste de “Rosa e Momo” lembra-nos da finitude, mas nos dá o alento de poder rever a força da atriz no esplendor de sua beleza, e também celebrar sua vida hoje.
Filme: Rosa e Momo
Direção: Edoardo Ponti
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9