Triste como um camelo

Triste como um camelo

Vivo uma relação momentaneamente conflituosa com os passarinhos. Nada que termine em pedras e alçapões, acreditem. Não se pode, contudo, confiar num ser humano. Eu, se fosse passarinho, também ficava, também me fartava de comida. Mas, confiava desconfiando, no limiar da gula, no ruflar das asas. Há uma pequena jabuticabeira no jardim de casa. Por causa das chuvas abundantes — em intermitência com o causticante sol de verão — está com os galhos apinhados de bolotas graúdas, pretas e suculentas. Da sala de estar, assisto à arvorezinha curta que está carregada de frutos. Sei que as avezinhas intrusas não me veem. Pode ser que pressintam a minha presença, aquele cheirinho de desumanidade pairando no ar, mas, definitivamente, não conseguem me enxergar através do vidro temperado, recoberto pela película protetora que bloqueia a incidência dos raios solares. “Quanta baboseira. Não me admira que os níveis de vitamina D no sangue estejam ridículos”, nos dizeres do Doutor Strangelove. “Vai brincar no sol, homem!.” Nessa briga inglória contra o astro-rei, levo sempre a pior. Melhor para os passarinhos. Que voam miúdos. Que saltitam lépidos e fagueiros de galho em galho. Não me perguntem sobre a espécie. Não saberia classificá-los. Aliás, nem mesmo sei como se diz: espécie, raça, tipo ou qualidade? Só sei que caberiam na palma da minha mão, se nela pousassem. Mas, não são bobos esses danados. Possuem o bico curto, reto, fino e pontiagudo como uma agulha. Perfuram a casca da jabuticaba com destreza cirúrgica e sugam de dentro a polpa adocicada, largando para trás um fruto feioso, murcho, vazio, dependurado pelo talo. Toca mais uma do Geraldo Azevedo. Sou daqueles que ainda ouve músicas pelo rádio. Um retrocesso. Sinto-me um bagaço. Já faz tempo que perdi o olfato por causa da nefasta onda de Covid-19. E sei que a vida continua, porque, afinal, a fome e a disputa por alimentos também continuam. Mastigo um pedaço de panetone com bolor — para mim, tanto faz — que restou do Natal do ano atrasado. Coisas assim duram uma eternidade, por causa dos produtos químicos que os fabricantes juram de pés-juntos não utilizar para a conservação dos alimentos. Tristeza e alegria não têm prazo de validade. Nunca se pode cravar que sentimento virá na sequência. Quem sabe, riso; quem sabe, pranto. A metáfora da roda gigante, num desequilíbrio imperfeito que a todos afeta. Pode ser que eu esteja mais para ave do que para homem. Ou para pedra. Ou para galho. Disputo os frutinhos com os meus coirmãos emplumados, noutro aparente ato de avareza humana. A felicidade ainda luta pela sobrevivência. Mais conveniente será que cheguemos a um acordo justo, a fim de partilharmos de forma igualitária a farta produção desta temporada. Tomamos dribles da morte num jogo sem regras claras. C’est la vie. Cada qual digere a dor da ausência na proporção inexata de um amor vivido. Acho que, hoje, sinto-me mais vívido e com mais vontade de amar. Abro a vidraça. A passarada arisca debanda em revoada. Eu também voaria, se soubesse. Salto para dentro do jardim, um selvagem em estado bruto. Sinto o barro frio vazar entre os dedos dos pés. Mesmo assim não me julgo parte da lama. Sirvo-me da minha cota de jabuticabas. Penso no meu velho com desvelo e com suavidade. “Chupa que é doce, meu filho.” Parece que vai chover. Ah… Canta, coração!  

*Inspirado — também — em “Canta, coração”, uma composição de Carlos Fernando e Geraldo Azevedo

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.